O PECADO DA ACEPÇiÃO DE PESSOAS
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Texto de Estudo
INTRODUÇÃO
Na lição passada vimos que ouvir a Palavra e falar a Palavra não substitui o praticar a Palavra. Apenas ter uma confissão de fé ortodoxa não substitui o praticar a Palavra. Na lição de hoje veremos que a maneira como nos comportamos com as pessoas indica o que realmente nós cremos sobre Deus. Não podemos separar o relacionamento humano de comunhão divina (1 João 4:20). Neste capítulo, Tiago diz que nós podemos testar a nossa fé pela maneira como nós tratamos as pessoas.
A questão fundamental na primeira parte do capítulo 2 de Tiago é esta: um verdadeiro seguidor de Cristo não pode acalentar o preconceito, ou seja, ele não pode fazer acepção de pessoas. É sobre isto que veremos no estudo de hoje.
UM MANDAMENTO IGNORADO
Tiago começa seu novo discurso dizendo: “Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com favoritismo” (2:1, NVI). Ele pretende provar que a fé verdadeira é conhecida pelo relacionamento imparcial com as pessoas. Favoritismo e acepção de pessoas não são atitudes de um cristão. Mas nem sempre obedecemos a esta orientação. O racismo, o regionalismo, o machismo, a separação por níveis culturais ou econômicos sempre estão presentes em nosso meio.
Julgar as pessoas por sua aparência física, status social ou raça é uma agressão aos princípios de Cristo. Paulo diz que “em Deus não há parcialidade” (Romanos 2:11). E Moisés, quando fala do caráter de Deus, diz que ele “não age com parcialidade nem aceita suborno” (Deuteronômio 10:17). Jó diz que Deus “não faz acepção das pessoas de príncipes, nem estima ao rico mais do que ao pobre; porque todos são obra de suas mãos” (Jó 34:19)
Tiago chama esse tratamento parcial de acepção de pessoas, que significa literalmente “aceitar o rosto de alguém”, em vez de considerar o seu interior. Essa expressão ocorre tão somente aqui, em todo o Novo Testamento. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje assim traduz o verso 2: “Nunca tratem as pessoas de modo diferente por causa da aparência delas”. Disso surge a ideia de parcialidade, favoritismo, distinções injustas entre as pessoas com base na aparência e, por isso, tratamento melhor a uma do que a outra.
As Escrituras ensinam que Deus não faz acepção de pessoas com base naquilo que elas são por nascimento, classe social, raça ou gênero. Portanto, nós também devemos exterminar as barreiras da comunhão (cf. Colossenses 3:11). Todos nós podemos assentar-nos juntos em qualquer congregação cristã.
UMA ILUSTRAÇÃO SOBRE O PECADO DA ACEPÇÃO
Depois de estabelecer o princípio geral de que os cristãos não devem fazer acepção de pessoas, Tiago apresenta um caso para ilustrar seu ensino. Assim, ele começa dizendo: “Suponham que na reunião de vocês...” (2:2, NVI). O verbo supor dá a entender que o que Tiago vai dizer é uma situação hipotética, é um exemplo que nenhum cristão deve imitar nos seus relacionamentos e que, adverte ele, nunca deve acontecer numa reunião de cristãos.
Sinagoga era um termo empregado para designar locais de reuniões, onde havia poucos assentos reservados a um grupo pequeno de pessoas. As demais se amparavam nas paredes ou sentavam-se no chão com as pernas cruzadas. Tiago está supondo uma situação entre duas classes, a dos ricos e a dos pobres. E tal distinção era fácil de ser percebida durante uma reunião, pois ali poderia entrar “um homem com anel de ouro e roupas finas” (2:2, NVI), ou seja, um homem rico, e também entrar “um pobre com roupas velhas e sujas” (2:2, NVI). Naquele tempo, uma pessoa era distinguida pela quantidade de anéis de ouro que se trazia nas mãos e por suas roupas caras. O pobre só tinha uma muda de roupa e era com ela que ele ia para todos os lugares, mesmo que estivesse suja.
Então Tiago continua sua ilustração: “Digamos que vocês tratam melhor o que está bem vestido e dizem: ‘Este é o melhor lugar; sente-se aqui’, mas dizem ao pobre: ‘Fique de pé’ ou ‘Sente-se aí no chão, perto dos meus pés’” (2:3, NTLH). Ou seja, hipoteticamente eles estavam dando uma atenção especial ao homem que estava vestido com roupas finas, mas ao chegar o pobre, esfarrapado, com roupas sujas e, provavelmente, cheirando mal, o desprezavam, pedindo para ele sentar-se no chão. A rigor, não era um lugar de desonra, mas tornava-se uma atitude desonrosa por causa da distinção entre o pobre e o rico. Tiago supõe, então, que a Igreja está dando uma atenção especial e diferenciada aos ricos, em função do padrão econômico desses dois homens da comunidade.
Não podemos tratar as pessoas de maneira diferente só pela sua situação financeira. Tiago diz que dar prioridade aos ricos pelo fato de serem ricos é pecado. Privilegiar certa classe social é pecado. Trata-se de preconceito baseado na aparência e status social. Tiago chama isso de discriminação, e pergunta: Vocês não estão “fazendo julgamentos com critérios errados?” (3:4, NVI). Distinguir com honras as pessoas mais importantes é uma tentação gravíssima para a Igreja de Cristo. Infelizmente, isto acontece com certa frequência ainda hoje.
Deus não precisa da glória humana para a prosperidade de sua obra. Tampouco carece a Igreja de auxílios humanos com motivações espúrias para triunfar. Nós não devemos adular nem podemos ter dois evangelhos. Um, para dizer ao pobre que ele deve arrepender-se de seus pecados, senão vai para o inferno; e outro, para dizer ao rico que nos sensibilizamos com sua visita e que ela nos enche de satisfação.
O CRITÉRIO DIVINO
Tiago continua a expor o que há de errado na discriminação. Nos versos anteriores mencionou a acepção de pessoas com base na aparência, que nos equipara aos juízes que baseiam seus julgamentos em motivos perversos. Agora ele acrescenta a ideia de que também acabamos por inverter a maneira como Deus vê as pessoas. Ele passa a mostrar que o critério de Deus é diferente do critério dos homens. O critério de Deus é nossa condição espiritual e não nossas posses, nossa cultura, educação, a cor da nossa pele etc. Os homens escolhem os ricos. Deus escolheu os pobres!
Observe o que Tiago diz nos versículos 5 e 6: “Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam? Entretanto, vós outros menosprezastes o pobre”. Tiago inicia seu argumento com um imperativo (“ouvi”), que aqui é usado como uma exortação e pode ser traduzido como: “Prestem atenção”. Prestar atenção em quê? O que Tiago deseja é que eles atentem para a maneira como Deus vê os cristãos pobres.
Em primeiro lugar, Deus os vê como ricos na fé. Tiago introduz esse ponto com uma pergunta retórica: “Porventura, não escolheu Deus os que para o mundo são pobres para serem ricos na fé?” (2:5, ARC). A ênfase na sentença grega recai sobre Deus. Ele é quem escolheu os pobres para serem ricos na fé, em contraste com a escolha da Igreja em menosprezá-los. Eles são chamados de “os que são pobres aos olhos do mundo” (NVI); isto é, aqueles que são considerados pobres na perspectiva da sociedade, desprovidos, sem recursos ou condições de uma vida confortável e segura. A estes, diz Tiago, Deus soberanamente escolheu para serem ricos na fé.
Em segundo lugar, Deus os vê como herdeiros do Reino. Tiago diz, no verso 5, que os pobres também são “herdeiros do reino que ele [Deus] prometeu aos que o amam”. O reino de Deus é superior a qualquer reino terreno e ultrapassa em glória qualquer riqueza humana. Os que são pobres para o mundo, mas são cristãos em Jesus Cristo, são herdeiros de Deus (cf. Mateus 5:3; Lucas 6:20). Aguardam entrar na posse dessa riqueza enquanto vivem neste mundo, como os heróis da fé (Hebreus 11:13¬-16). Esse reino Deus “prometeu aos que o amam”, expressão que Tiago já usou para referir-se à promessa que Deus fez aos cristãos verdadeiros, aqueles que suportam com perseverança as provações, entre elas a pobreza (1:12).
Tiago denuncia a atitude de menosprezo de seus leitores para com os Pobres, em contraste com a atitude de Deus ao honrá-los: “Entretanto, vós outros menosprezastes o pobre”. Ele os identifica como os autores da discriminação (“vós”). Menosprezar o pobre mostra o tipo de transgressão que eles haviam cometido. Menosprezar é tradução do verbo grego atimázein, que literalmente significa desonrar, desprezar, desdenhar, despojar alguém da honra ou respeito que lhe são devidos, uma ofensa grave nas sociedades orientais antigas. Era isso que os judeus cristãos estavam fazendo aos irmãos pobres em suas igrejas, ao negar-lhes assento ou lugar de honra, preterindo-os aos ricos. Na perspectiva bíblica, desonrar o pobre é desonrar a Deus (cf. SI 14.6; Provérbios 14:31; 17.5).
UMA REALIDADE ESQUECIDA
A atitude parcial daqueles irmãos ficava ainda mais clara quando se levava em consideração o modo como os ricos tratavam os cristãos. Tiago traz à mente deles uma realidade esquecida ou pelo menos ignorada propositalmente em certas ocasiões, fazendo três perguntas nos versos 6 e 7: “Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos arrastam para os tribunais? Não são eles os que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invocado? As três perguntas são iniciadas por negação, na expectativa de resposta positiva.
Tiago destaca três atitudes dos ricos para com aqueles irmãos.
Em primeiro lugar, ele fala da opressão econômica. Tiago pergunta: “Não são os ricos que vos oprimem?” (2:6). A palavra grega usada por Tiago significa literalmente dominar, exercer controle sobre alguém, usar o poder contra outro. Daí a ideia de explorar e, em seguida, oprimir. Essa palavra frequentemente aparece na Septuaginta para descrever a exploração e opressão dos ricos contra os pobres, viúvas e órfãos (cf. Neemias 5:5; Amós 4:1; Miquéias 2:2; Habacuque 1:4; Zacarias 7:10). Mais à frente Tiago denuncia em detalhes a opressão econômica dos ricos para com os trabalhadores pobres (5:1-6; cf. Jó 20:19; SI 10:¬14; Amós 2:6).
Tiago chama seus leitores à razão: os ricos, que eles honravam nas igrejas em detrimento dos irmãos pobres, eram os mesmos que os oprimiam, mudando o salário, deixando de pagá-lo, enriquecendo-se à custa do seu suor. Muitos cristãos eram jornaleiros, agricultores, empregados dos ricos proprietários de terras. Eram estes que os oprimiam e os faziam passar por grandes provações.
Em segundo lugar, ele fala da injustiça. Ele faz uma nova pergunta: “Não são eles [os ricos] que vos arrastam para os tribunais?” Naqueles dias, os cristãos pobres estavam sentindo pressão dos judeus ricos que eram seus senhores, e estavam recebendo tratamento áspero dos juízes ante os quais eram levados para as sanções da lei.
No caso específico das igrejas às quais Tiago escreve, o comparecimento violento e compulsório dos cristãos pobres aos tribunais, movido pelos ricos, pode ter como causa a cobrança daquilo que tiveram que lhes tomar emprestado, ou seja, para que pagassem dívidas contraídas com seus patrões. A pobreza extrema levava as pessoas a penhorar suas casas, bens e até a família. Os ricos não tinham a menor misericórdia e compaixão. E, mesmo sendo judeus, desrespeitavam as leis que protegiam os pobres em casos como esses. A julgar pelo que Tiago diz mais adiante, os cristãos eram não apenas condenados nesses tribunais, como também, alguns deles, postos à morte (5:6).
O ponto aqui é que tais pessoas, opressoras e cruéis, que eram inimigas de Deus, ao entrar nas igrejas, recebiam tratamento especial, enquanto aqueles que Deus escolheu para serem ricos na fé eram menosprezados. Grande era o pecado daquelas igrejas! E não somente delas, mas de toda a cristandade, onde quer que tenha se deixado guiar pelas aparências no tratamento das pessoas.
Em terceiro lugar, ele fala da difamação. Tiago lhes pergunta mais uma vez: “Não são eles os que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invocado?” A terceira pergunta que Tiago faz sobre os ricos pode esclarecer o motivo pelo qual estes estavam arrastando os cristãos pobres aos tribu¬nais, a saber, pelo nome de cristão. Mais uma vez, a frase é uma pergunta que começa com negativa e espera resposta positiva dos leitores. Tiago deseja que os próprios cristãos digam com sua boca que os ricos que estavam honrando eram os mesmos que blasfemavam de Cristo. Blasfemar significa falar mal, difamar, depreciar alguém mediante palavras, o que era uma coisa melindrosa numa sociedade que dava muito valor à honra. Com relação a Deus, o termo é usado na literatura bíblica para o falar de forma irreverente, desrespeitosa e ímpia do nome de Deus.
Tiago diz que estes ricos blasfemavam continuamente “o bom nome” que havia sido invocado sobre os cristãos. Embora toda generalização seja injusta, ele pretende envergonhar seus leitores com a gritante incoerência da discriminação que estavam cometendo contra os pobres.
A LEI DO AMOR
Nos versos 8 a 11, Tiago continua sua discussão do assunto da acepção de pessoas, e agora ele enquadra os que cometem discriminação como transgressores da Lei de Deus. Assim, ele parte para uma conclusão de sua argumentação falando de duas leis que regem a vida do crente. São elas a Lei do Amor e Lei da Liberdade.
Tiago estabelece um contraste entre a coisa certa a fazer, que é amar ao próximo (2:8), e a coisa errada a fazer, que é cometer o pecado da acepção (2:9). O contraste é entre duas condições existentes ou hipotéticas.
Os versos 8 e 9 começam com um “se”, seguido do verbo no indicativo, indicando uma situação que existe ou que pode, teoricamente, existir.
A primeira condição é se observamos a lei régia, agimos bem. Ele diz: “Se vocês de fato obedecerem à lei real encontrada na Escritura que diz: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’, estarão agindo corretamente” (2:8, NVI). O verbo observar significa cumprir plena e completamente uma obrigação; daí a ideia de obedecer. Isto se ajusta com a visão de Tiago, para quem a verdadeira religião não se dissocia da prática, da obediência e do cumprimento da lei de Deus (cf. 2:10).
Tiago gosta de usar o termo “lei”, provavelmente por causa da formação judaica, tanto sua quanto de seus leitores. Ele fala da “lei perfeita” (1:25), da “lei da liberdade” (2:12). E, aqui, a expressão “lei régia” é usada para se referir ao mandamento de amar ao próximo. A lei real mencionada por Tiago, diz assim: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levíticos 19:18). O amor ao próximo é visto como a principal lei do reino de Cristo. Amar ao próximo é a lei régia porque este é o maior preceito da lei. O Senhor Jesus disse que o amor a Deus e ao próximo é o maior de todos os mandamentos e que toda a lei e os profetas dependiam dessa lei (Mateus 22:34-40).
A lei do Reino é amar o próximo como a si mesmo. Este é um princípio poderoso contra o preconceito. Um dos testes para nós cristãos sabermos se estamos agindo corretamente em relação à lei do reino é nossa atitude para com o nosso próximo (cf. Romanos 13:8; Gálatas 5:14). Paulo chama o amor ao próximo de “a lei de Cristo” (Gálatas 6:2). A vida na esfera do amor deve ser o nível da vida dos cristãos (cf. 1 João 3:18-20). Para Tiago, uma das aplicações da lei régia é não discriminar o próximo por conta de sua condição social ou aspecto exterior. Assim, é o amor que deve nortear o relacionamento da Igreja com as pessoas, e não o dinheiro que as pessoas têm. Se os cristãos cumprirem essa lei, farão bem, pois estão procedendo corretamente diante de Deus.
A segunda condição é se fazemos acepção de pessoas, somos condenados pela lei como transgressores. Tiago diz assim, no verso 9: “Mas se tratarem os outros com favoritismo, estarão cometendo pecado e serão condenados pela Lei como transgressores” (NVI). Aqui temos a condição contrária àquela mencionada no verso anterior, ou seja, cometer pecado pela transgressão do mandamento de amar ao próximo. Esse pecado implica fazer acepção de pessoas, que no caso dos leitores judeus cristãos de Tiago consistia no tratamento diferenciado que davam aos ricos bem vestidos, em detrimento dos pobres andrajosos, quando entravam em suas igrejas. Ao fazer esse tratamento diferenciado, os cristãos estavam cometendo pecado. Tiago não vê o preconceito contra o pobre como algo trivial, mas como pecado mesmo, um desvio do padrão divino de justiça.
Tiago chama a atenção dos seus leitores para a gravidade da atitude deles: pecavam ao tratar as pessoas de acordo com a maneira com que se vestiam. E, ao fazê-lo, seriam “argüidos pela lei como transgressores”. A lei condena¬va claramente a acepção de pessoas no meio do povo de Deus (cf. Levíticos 19:15; Deuteronômio 1:17; 16:19). Os cristãos que cometem este tipo de pecado transgridem a lei e estão sujeitos às penalidades que o próprio Deus lhes inflige. A lei manda que amemos ao próximo. Quando discriminamos os pobres malvestidos e favorecemos os ricos bem trajados, quebramos a lei de Deus, que imediatamente nos argui como transgressores.
Então Tiago explica porque aquele que comete o pecado da acepção de pessoas se torna um transgressor da lei de Deus, dizendo:
Em primeiro lugar, porque a Lei, que expressa a vontade de Deus, para o seu povo, é um todo indivisível. Tiago nos diz assim no verso 10: “Pois quem obedece a toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la inteiramente” (NVI). Qual lei era essa? Estaria Tiago falando aqui da Lei Moral, ou seja, apenas dos dez mandamentos? Não! Tiago está se referindo ao Pentateuco, e não somente ao decálogo, pois os judeus não dividiam a lei em moral e cerimonial. Este tipo de linguagem era desconhecida da mentalidade da igreja judaica a qual Tiago presidia. A Lei para eles era uma só! A epístola de Tiago não foi endereçada a gentios, mas a judeus convertidos (cf. 1:1).
Disto concluímos, quanto aos mandamentos da Torá, que, para Tiago, quem desprezasse uns e praticasse outros, a si mesmo constituía transgressor. Portanto, segundo Tiago, a transgressão de um único mandamento acarreta culpa pela Lei como um todo. A vontade de Deus não se deixa dividir. Fazer exceção de um só mandamento é atentar contra a santidade de Deus e de sua simplicidade. É a razão pela qual o desprezo de uma única palavra da Lei cria um transgressor do conjunto.
Em segundo lugar, porque a Lei reflete a vontade de Deus de um só Legislador. Observem o que Tiago nos diz no verso 11: “Pois aquele que disse: ‘Não adulterarás’, também disse: ‘Não matarás’. Se você não comete adultério, mas comete assassinato, torna-se transgressor da Lei” (NVI). Tiago nos dá, aqui, um exemplo circunstanciado e fundamentado do que acaba de ser dito, no verso 10, argumentando que o mesmo Deus que deu o sétimo mandamento, “não cometerás adultério”, também deu o sexto, “não matarás”. Tiago, naturalmente, está seguindo a ordem da Septuaginta, que apresenta estes mandamentos em ordem inversa.
A unidade da Lei reside no Legislador, que determinou ambas as proibições. Portanto, violar um mandamento é desobedecer ao próprio Deus e faz com que a pessoa se torne culpada diante dele. Esta era uma lógica judaica.
Os leitores judeus provavelmente consideravam cometer adultério muito mais grave que fazer acepção de pessoas. Daí Tiago ter escolhido “não adulterarás” para fazer a comparação. Pecados carnais sempre são vistos como mais graves do que os mentais. Os cristãos tendem a pensar que somente se cometerem adultério ou outro crime mais óbvio é que se tornarão transgressores da lei de Deus. Contudo, se não adulteras, mas cometes acepção de pessoas vens a ser transgressor da lei.
PERSPECTIVA ESCATOLÓGICA DO JUÍZO
Até aqui já vimos que a discriminação de classes constitui uma violação da Lei e da vontade de Deus (2:8-11). Agora Tiago vai situá-la na perspectiva escatológica do juízo, e isso em duas perspectivas. Senão, vejamos:
Em primeiro lugar, porque seremos julgados pela lei da liberdade. Observe o que Tiago nos diz no verso 12: “Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade”. Quando os cristãos cometem acepção de pessoas, tomam-se transgressores da Lei de Deus e dos Dez Mandamentos em particular. Contudo, eles são julgados por uma lei maior, a lei da liberdade, que é o Evangelho (1:25). Seria pensando nisso que eles deveriam falar e proceder neste mundo.
Tiago adverte a seus leitores que falem e procedam como aqueles cujas palavras e obras serão julgadas por Deus. Falar e proceder é um dos binômios que Tiago gosta de empregar nessa carta para identificar o verdadeiro crente: ele ouve e pratica; ele crê e faz boas obras. Deve haver uma coerência entre aquilo que falamos e aquilo que praticamos.
É importante observar que a transgressão da lei cometida por um verdadeiro cristão não acarreta a perda da sua salvação, pois pela lei ninguém será salvo (Gálatas 3:11), mas certamente o expõe aos castigos tempo¬rais de Deus, que o disciplinará para arrependimento. Tiago continuamente exorta seus leitores, que considera como cristãos genuínos, ao arrependimento, não para a salvação, mas para a reconciliação com Deus.
Em segundo lugar, porque o juízo de Deus será proporcional aos nossos atos. Tiago diz assim no verso 13: “Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia”. Tiago se refere aqui ao dia do juízo final, quando a sentença condenatória será passada, sem misericórdia alguma, contra os que nunca a usaram. Tiago tem em mente aqueles que não usaram misericórdia para com os pobres andrajosos que entravam nas suas igrejas, desprezando-os e humilhando-os. Tiago relembra seus leitores de que serão julgados de acordo com a atitude que tiveram para com as pessoas. Portanto, eles sempre deveriam falar e se conduzir pensando no dia do julgamento, quando suas obras seriam trazidas a lume e examinadas quanto aos motivos.
CONCLUSÃO
O ensino de Tiago pode ser exposto em frases curtas e definidas: a Igreja não faz acepção de pessoas. Não privilegia pessoas por situação econômica, social, cultural ou racial. Não odeia classes. Cristãos que fazem acepção de pessoas são preconceituosos contra os pobres, julgam pelas aparências e mostram favoritismo aos ricos bem vestidos; são na realidade cristãos apenas na aparência. No dia do juízo serão condenados e sentenciados ao castigo eterno, sem qualquer misericórdia. Não se encontre em nós o pecado de acepção de pessoas, pois Deus não nos trata assim.