5 De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, 6 Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, 7 Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; 8 E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
Filipenses 2:5-8
INTRODUÇÃO
Do ponto de vista doutrinário e histórico, a encarnação do Verbo Divino, do Filho de Deus, do Deus Filho, tem sido o tema que tem gerado as maiores controvérsias e teorias a respeito de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. Essas discussões sempre resultaram em muita polêmica e teses, que tentaram explicar, racionalmente e à luz da limitação humana, como se deu a existência plena de Deus na encarnação do “Verbo Divino” e a coexistência plena, em Jesus Cristo, duas naturezas: a humana e a divina. Notadamente nos séculos IV e V houve grandes divergências a respeito da natureza de Jesus Cristo, a partir da descrição da “Encarnação do Verbo”, conforme explicitado no evangelho de João 1:14 (“e o Verbo se fez carne”). Do mesmo modo, uma outra passagem das Escrituras que aponta na mesma direção e sentido, e que foi uma das bases para muita discussão, está na Carta aos Filipenses 2:7 que diz: “Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;”.
A encarnação está exposta, nestas passagens, como uma apropriação da natureza humana e que Cristo Se humilhou, tomando a forma de servo. É isso que está dito. No entanto, as discussões foram além do que estava escrito e giraram em torno do como isso ocorreu, ou melhor, como funciona a encarnação. E mais perguntas, tais como: como poderia Deus se fazer homem sem abrir mão dos Seus atributos? E como subsistiria, em Jesus Cristo, a natureza e a consciência humanas em um Ser que também é Divino? E por fi m, a pergunta principal: do que Ele Se esvaziou? Essas são perguntas que devem ser respondidas pela Revelação de Deus na Sua Palavra, a Bíblia. É na Bíblia que o ápice da Revelação Especial de Deus se dá e este cume da Revelação estão na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, Deus, o Filho, encarnado para realizar a obra de salvação de todos aqueles que crerem. Antes de qualquer leitura no Texto Sagrado, convém lembrar que se deve ter humildade diante da Palavra de Deus. O leitor estudioso, aquele que busca, com sinceridade, mais do que entender, viver o Evangelho, deve estar ciente que Deus só é conhecido “se”, “como”, “quando” e “de quem” Ele quer se fazer conhecido. Por isso, a humildade deve estar presente nos corações e mentes de todos que seguem Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.
A TEORIA DO ESVAZIAMENTO TEORIA KENÓTICA
Em termos de origem histórica, pode-se afirmar que foi a partir do século XVII, no início, que ocorreu uma controvérsia entre teólogos luteranos que eram ligados a duas universidades: Giessen e Tübingen. O que estava em questão era a respeito do fato de nenhum dos Evangelhos mencionar o fato de Jesus Cristo, no período do seu ministério, não ter usado nenhum dos atributos da divindade como a onisciência e a onipotência. A partir dessa, possível, constatação, duas vertentes surgiram. A primeira dizia respeito ao fato de Jesus ter usado os atributos secretamente (Krypsis). A segunda apontava que Ele Se abstivera totalmente dos atributos e deu origem ao que veio a ser a teoria da quenose(Kenósis).
A reflexão a respeito da encarnação do Deus Filho e do Seu esvaziamento, conforme exarado na carta do Apóstolo Paulo aos Filipenses, ganha tons mais obscuros, complexos e contrários à Palavra de Deus a partir do Século 19.34 Pode-se marcar como expoente notável da Teoria Kenótica, o teólogo luterano alemão Gottfried Tomasius, que, ao tratar da análise do texto de Filipenses 2:7 aborda a apropriação da natureza humana, como sendo um esvaziamento da Divindade. No seu livro Cristhi Person und Werk,(A Pessoa e a Obra de Cristo), este autor argumentava que, ao encarnar-Se, Deus Filho, deixa de lado e abandona Sua onisciência e Sua onipotência, retendo apenas os atributos do amor e da Santidade.
Louis Berkhoff, resume a teoria kenótica em quatro principais linhas de argumentação. A primeira, representada por Thomasius, Delitzsch e Crosby. Essa corrente, que tem Thomasius como expoente, faz distinção entre os atributos absolutos, tais como o poder absoluto, santidade, verdade e amor e os atributos relativos, que não são essenciais à Soberana Divindade, quais sejam: a onipotência, a onipresença e a onisciência. Essa corrente de pensamento sustenta que, em Cristo, na encarnação, Deus abandonou todos os atributos relativos à divindade (onipotência, onipresença e onisciência), retendo apenas os atributos absolutos como a santidade, a verdade e o amor. O Verbo Divino assumiu inteiramente a condição humana.
A segunda corrente, representada por Gess e H.B. Beecher, é ainda mais radical, pois, para esses teólogos, a encarnação representou uma espécie de “suicídio divino”. Assim, para essa corrente, ao encarnar, o Verbo Divino desistiu completamente de suas atribuições de sustentador e mantenedor do universo, abrindo mão de todas as Suas funções cósmicas. Nesse sentido, a humanidade de Cristo poderia significar até que Ele poderia pecar. A terceira corrente, representada por Ebrard, concorda que o Logos tomou lugar da alma humana. O Deus Filho renunciou à eternidade e assumiu as limitações da própria existência humana. Ainda assim, isso não significou um completo esvaziamento do Logos, Verbo Divino, pois, nesse caso, as propriedades foram retidos enquanto o Verbo Divino estava encarnado.
A quarta corrente, representada por Martensen e Gore, defendia que havia uma espécie de “vida dupla” no Verbo Divino e havia, na verdade, dois centros vitais comunicantes, ou seja, havia uma situação em que, ao mesmo tempo que o Logos continuava com Suas funções cósmicas, o Logos exercia as funções humanas em Jesus Cristo. Desse modo, não haveria uma unidade de personalidade, mas duas personalidades vivendo juntas. O conhecimento do homem Jesus a respeito de Deus era igual ao de qualquer outro ser humano.
Essa é a base do conceito de Kenósis que foi construído a partir do século 19; em síntese: ao encarna-Se, o Deus Filho, o Verbo Divino, abre mão e abandona Seus atributos divinos de onisciência, onipresença e onipotência, além de abdicar de Suas funções cósmicas como criador e mantenedor do universo. Algumas vertentes dessa teoria tratam do abandono dos atributos, tanto relativos quanto absolutos, como uma condição necessária para a humanidade plena de Jesus Cristo. Entretanto, a despeito das diferentes abordagens do tema, todos os teólogos que abraçaram essa teoria apontam, mesmo incorrendo em contradições e inconsistências, que a encarnação, de qualquer forma, limitaria e/ou mudaria Deus, em Jesus Cristo.
AS REFUTAÇÕES À LUZ DA BÍBLIA.
As afirmações e conclusões dos teólogos que defendem a teoria do esvaziamento (Teoria Kenótica) foram combatidas nas suas bases. Notadamente, quanto à coerência, com o que é dito no Texto Sagrado a respeito de Jesus Cristo, quanto à natureza do Verbo de Deus, Sua consciência plena, personalidade única, manutenção das funções de mantenedor e sustentador do universo e a Triunidade Divina.
A primeira linha de refutação à Teoria do Esvaziamento (Kenósis) é apresentar a natureza e a função de Jesus Cristo como mantenedor do universo na Bíblia, O Novo Testamento deixa claro que Jesus Cristo sustenta todas as coisas, conforme está explícito na carta aos Hebreus, capítulo 1 e verso 3, que segue: “O Filho, que é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela sua palavra poderosa, depois de ter feito a purifi cação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas” (NAA).
No mesmo sentido, tem-se em Colossenses 1:17 que diz: “Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste”. Ainda, há que se lembrar que os discípulos viram a Sua glória, conforme está escrito no evangelho de João 1:14. Por fi m, e não menos importante, convém salientar que Jesus Cristo afirma que o Deus Pai trabalhava e Ele continuava “trabalhando”, em um exemplo de cura milagrosa em benefício da vida, conforme está escrito em João 5:17: “o Pai trabalha até agora e eu também...”. Assim, não encontra amparo a afirmação de ter havido uma renúncia ou abandono dos atributos de onisciência, onipotência, bem como das funções de sustentador e mantenedor do universo.
Em segundo lugar, admitindo-se a total ausência de atributos divinos absolutos ou relativos, ter-se-ia que Deus, ao encarnar-se, havia mudado de natureza. Assim, essa posição da Teoria do Esvaziamento é contraditória em relação ao texto Bíblico, que nos garante que Deus jamais mudou, conforme está escrito nos textos de Malaquias 3:6 Tiago 1:17 bem como na Carta aos Hebreus 13:8 respectivamente, “De fato, eu, o Senhor, não mudo. Por isso vocês, descendentes de Jacó, não foram destruídos” (Malaquias 3:6); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes” (Tiago 1:17); “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e para sempre” (Hebreus 13:8).
Em terceiro lugar, a posição da Teoria Kenótica quanto a Jesus Cristo não possuir ou apresentar nenhum atributo divino, pelo menos, em Sua existência terrena, é derrubada pelos Evangelhos e Cartas. Como exemplo de atuação divina de Jesus Cristo, durante Seu ministério na terra, temos o texto de Marcos 4:41 onde está claro que Jesus exerce domínio sobre a natureza, pois “até o vento e o mar lhe obedecem”40. No mesmo sentido, temos que “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade”, conforme está escrito em Colossenses 2:9. Também podemos ver em Mateus 11:28 conforme transcrito abaixo: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mateus 11:28).
Por fim, e não menos importante, ainda havia, entre alguns que defendiam a Teoria Kenótica, a ideia de que Jesus Cristo poderia estar enganado quanto à interpretação dos textos do Antigo Testamento, o que é refutado pelo que está escrito nos textos de Mateus 4:4 5:18,19, e João 10:354-1. Assim, fi ca claro que a chamada Teoria Kenótica terminou por entrar em contradição com o Texto Sagrado, não encontrando sustentação para as teses levantadas. Entretanto, não se pode negar o texto de Filipenses 2:7 pois, de fato, está escrito: “mas esvaziou-se a Si mesmo, vindo a ser servo, tornando-Se semelhante aos homens”. Assim, as perguntas que ainda restam são: esvaziou-se de quê? Como posso entender essa afirmação?
VERDADEIRA KENÓSIS
Ao se examinar as Escrituras, principalmente, no texto de Colossenses 2:5-11, vê-se que Cristo, subsistindo na forma de Deus, esvaziou-Se. Não se pode negar ou ignorar o que está escrito. Do mesmo modo, não se ignora que “sendo rico, ele se fez pobre”, conforme está 2 Coríntios 8:9. De pronto, mesmo com possíveis dificuldades de interpretação, tem-se que o Cristo, ainda pré-encarnado, ocupava uma posição da maior eminência, algo inimaginável para o homem. Segundo o texto de Filipenses, Ele subsistia “em forma de Deus” (en morphé theou hyparcon, Fp. 2:6). A palavra grega para “forma”, que é utilizada no texto, pressupõe que há total semelhança com o que é essencial e intrínseco em Deus, algo que faz parte da natureza do ser de Deus e que transparece em Jesus Cristo. Desse modo, temos que, essencialmente, Ele “é Deus”.
Assim, o que se tem no Novo Testamento é que a “forma” (Filipenses 2:6), a “imagem” (Colossenses 1:15) e a “glória” (Tiago 2:1) pertencem a “Cristo Jesus”, como pertencem a Deus, o Pai. E aqui podese tentar responder: esvaziou-se de quê? Da Glória que tinha junto a Deus, o Pai. O próprio Jesus Cristo nos responde para que condição Ele voltaria após o Seu sacrifício e ressurreição, conforme pode-se verificar no texto do evangelho de João 17:5 transcrito abaixo:
“E agora glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse” (João 17:5 ACF).
Desse modo, quando Paulo diz que Cristo “esvaziou a si mesmo,” ele não está retratando Cristo como um recipiente onde se poderia colocar ou retirar atributos. O propósito da passagem é mostrar a grandeza de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, a Sua humildade, fazendo os filipenses recordarem do sacrifício efetuado por Cristo. Nesse sentido, ele os estava prevenindo contra as disputas e vanglórias e, ao mesmo tempo, encorajando os crentes a praticar a abnegação, e assim preservar a unidade em torno do evangelho.
Com isso, pode-se afirmar que a humilhação de Cristo não foi esvaziar a Si mesmo de qualquer dos atributos da divindade, mas foi humilhar-se “tomando” ou “apropriando-se” de atributos humanos (Filipenses 2:7). O ato de “se esvaziar” foi o de tornar-se homem, tomando para Si, e em Si, a natureza humana. O ponto crucial dessa afi rmação é que Cristo foi abnegado, obediente e Se sacrifi cou por todo aquele que crê (2 Coríntios 8:9). Assim, a pergunta sobre como isso ocorreu passa a ser respondida, pois o esvaziamento foi, na verdade, a apropriação da natureza humana, em um ato de humilhação pela encarnação do Verbo Divino.
CONCLUSÃO
E agora, o que isso importa para minha vida? Como esse conhecimento pode levar-me a uma vida de comunhão e piedade cristãs? O maior exemplo de abnegação apresentado pelo apóstolo Paulo é também uma exortação e um convite. Todos os cristãos de todas as épocas, assim como os filipenses, são chamados a adotar a mesma atitude de Cristo Jesus. Deve-se estar pronto para negar os “partidarismos ou vanglórias” em favor do evangelho e em favor de outros crentes, em prol da Igreja de Cristo, que é o Corpo, do qual Ele é a Cabeça. Na vida, muitas circunstâncias podem levar ao orgulho, ao egoísmo, à defesa dos interesses próprios e à vanglória, pondo em risco a unidade cristã e a vida comunitária na Igreja. Nessas situações, onde todos os cristãos são confrontados, há que se estar disposto a ceder, negar-se e humilhar-se por uma causa maior: o Evangelho, o testemunho do Reino e a comunhão entre os irmãos. Lembremo-nos do que escreveu o apóstolo Pedro: “Portanto, humilhem-se debaixo da poderosa mão de Deus, para que ele os exalte no tempo devido” (1 Pedro 5:6); “Vivamos, pois de acordo com a luz com que já fomos iluminados” (1 João 1:7).
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO EM CLASSE
1. De forma resumida, o que preconiza a Teoria Kenótica?
R.
2. De que forma pode-se refutar a afi rmação de que Jesus não possuía atributos divinos?
R.
3. Do que Jesus Cristo se esvaziou?
R.
4. Qual o significado desse ato de Cristo para a vida do cristão? Exemplifi que o impacto na sua vida espiritual, tanto agora como para a eternidade.
R.