Texto de Estudo

Lucas 14:26:

26 Se alguém vier a mim, e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.

 

INTRODUÇÃO

 

Radical, simplesmente radical. É assim que podemos definir o chamado de Jesus àqueles que ouvem sua voz e querem segui-lo. Definimos assim esse chamado, “radical“, em primeiro lugar, porque ele tem uma raiz. E ela é Jesus Cristo. Isso delimita nosso fundamento. 

É o discipulado de Jesus que está em foco; e, não, o de qualquer outra pessoa. Lembremo-nos de que a arte de fazer discípulos não era exclusividade de Jesus de Nazaré; os demais rabinos da época de Jesus também os faziam. O pastor Ed René Kivitz explica-nos melhor como funcionava esse item:

 

Os meninos em Israel começavam a estudar a Torá aos 6 anos. A Torá era a Lei de Moisés, o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Aos 10 anos, ao final do primeiro ciclo de estudos, chamado Beit Sefer, esses meninos já haviam decorado a Torá. A partir daí, alguns voltavam para casa e aprendiam o ofício da família, mas os que se destacavam continuavam num segundo estágio, o Beit Talmud. Continuavam frequentando a escola judaica e estudavam sob a orientação de um rabino que os adotava para lhes ensinar mais profundamente a Torá e suas escolas de interpretação. Esses meninos extraordinários eram chamados talmidim, plural da palavra hebraica talmid, que o Novo Testamento traduz como discípulo. Os meninos talmidim eram a elite intelectual de Israel. Aos 12 anos, já haviam decorado todas as Escrituras: os livros históricos, os poéticos, os livros de sabedoria e todos os proféticos. Aos 14, debatiam a tradição oral, isto é, a interpretação dos rabinos a respeito da lei. Dedicavam a vida à discussão de como colocar em prática a lei de Moisés .

 

Sendo assim, qual era a diferença do discipulado de Jesus em relação as demais escolas judaicas de formação de discípulos da época? De fato, era a perspectiva do rabino. Jesus não era um rabino comum, formado nas bases da tradição dos homens. Ele era o Filho de Deus, fora gerado em útero humano, mas sua essência era transcendente a este mundo. Ele trouxe o ponto de vista de Deus ao campo de visão dos homens. Logo, seria inevitável que esse emparelhamento de perspectivas trouxesse tensões e até rupturas na forma de ver a vida e a relação com Deus. 

Numa linha de pensamento mais judaica, podemos dizer que o mundo terreno, e a consequente religiosidade que nele se desenvolveu, era uma espécie de odre velho. E Jesus e seus ensinamentos, o vinho novo . 

Em segundo lugar, usamos o adjetivo “radical” com a pretensão de afirmar que, ainda hoje, achamos espantoso - para não dizer desconfortável e incômodo -, as coisas que Jesus requer de nós. Os Evangelhos narram, em tom claro, as exigências ou o preço do discipulado. Por isso, muitos desistiram de seguir a Jesus naquela época. Seus milagres e ensinamentos arrebatadores atraíam muitos expectadores. Jesus não queria expectadores; desejava discípulos. Ele queria pessoas dispostas a pagar o preço. E que preço era esse? Falemos um pouco sobre isso nas linhas a seguir.  

 

O CUSTO DAS RUPTURAS FAMILIARES

 

É muito interessante o fato de Lucas ter colocado o texto de 14.25-33 logo depois de 14.15-24. Por que tal sequência é inusitada? Lucas vem amarrando suas narrativas em torno do tema o Deus que convida. Aliás, desde o verso sete, a questão do convite é coloca em foco. Então, nada mais coerente do que falar do preço do discípulo em nosso texto de estudo de hoje, dentro de um contexto maior, no qual Deus é descrito como aquele que convida as pessoas a estar com ele. Mas nem todos estão dispostos a aceitar o convite. 

O verso 25 de Lucas 14 começa narrando que “grandes multidões o acompanhavam”. Foi nesse momento que Jesus voltou-se à multidão e disse algo muito duro de se ouvir: “Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda a própria vida, não pode ser meu discípulo”(v.26). Se seu objetivo era multiplicar o número de discípulos, tal discurso não iria contra a sua proposta?! Pelo ponto de vista humano e estratégico, a resposta é sim. Porém, Jesus estava mais interessado em um tipo específico de discípulo: o que vai ter de lidar com a abnegação. Ele estava mais interessando nos que se deixariam ser transformados em discípulos e, não, naqueles que achavam que já o eram. O grau de exigência de Jesus revela que ninguém realmente nasce à altura do discipulado. 

Um dos altos custos que o discipulado requer de seus candidatos é o de potencializar, ou criar tensões no ambiente familiar. Os laços de família, na época de Jesus, eram tão fortes quanto o são hoje. Contudo, é preciso darmos atenção às variantes culturais. Estar sob a autoridade ou os cuidados de um chefe de família, outrora, garantiria não apenas um nome para o indivíduo, como também direitos e status social. Cortar ou ser cortado desse laço funcionaria como uma espécie de suicídio social, ou um mergulho na margem da sociedade e várias implicações negativas poderiam resultar de um ato como esse. 

A palavra aborrecer soa um tanto agressiva para nós, leitores atuais. E é uma reação esperada, pois “ao pé da letra”, o termo grego misei significa odiar, detestar, abominar. Entretanto, se pudéssemos esmiuçar, sem prejudicar o real sentido que Jesus quis empregar, seria “ame menos sua família”. Jesus não estava incitando o ódio aos parentes, apesar de uma leitura superficial caminhar para esse sentido. Ele usou de uma linguagem impactante para revelar que a devoção a qualquer membro da família deve ser precedida pela devoção ao Senhor. Não é que não devamos amar nossos parentes; devemos amá-los, sim!  

E, com que intenção, Jesus teria exigido tanto? O objetivo foi quebrar qualquer falsa expectativa. Greg Ogden, tomando como base um texto de William Barclay, disse: “Ninguém jamais pode dizer que foi induzido a seguir Jesus por falsos pretextos. Jesus nunca tentou subornar os homens, oferecendo-lhes um caminho fácil. ”  

Apesar de a pregação de Jesus, naquele momento, ter sido em um contexto determinado, portanto, requerendo uma aplicação local, não é difícil percebermos o quanto esse preço continua sendo pago, atualmente, por muitos discípulos espalhados por este mundo, mesmo em contextos culturais e históricos diferentes. Jesus sabia que, em uma situação ou outra, a decisão de se tornar discípulo nem sempre representaria uma convivência pacífica com as pessoas que amamos. Ainda que Deus tenha criado a família, sabemos que nem sempre elas trilharão os caminhos divinos. Haverá muitos “amores” em jogo. E, quando se configurar tal situação, deve-se decidir por qual amor o coração baterá mais forte. 

Talvez aqui, na cultura brasileira, essa tensão não seja revestida de um caráter tão dramático. Todavia, na cultura e na religião mulçumanas, por exemplo, a situação é bem dramática. Podemos ter acesso fácil, pela internet, a muitos testemunhos de ex-membros do Islã que converteram a fé em Jesus Cristo. A ruptura, em tais casos, foi tão chocante que os próprios pais, aliados aos militantes da islamização, chegaram a usar maus tratos, forçando-os a fugirem para sempre da terra natal. Alguns dos desertores da fé islâmica, porém, não têm tanta sorte e são mortos antes. 

Isso não diminui o estresse causado nas famílias brasileiras. O volume dessa tensão ocorre em vários aspectos. Nem todo conflito em seio familiar acontece pela ameaça de vida. Ou seja, quando um ou alguns ameaçam a integridade e o bem-estar de outro, ou dos outros membros da família. A tensão pode também se ligar ao aspecto moral. Ora, não foi o próprio Pedro quem pintou, em cores vivas, a aflição de Ló?! “... e livrou o justo Ló, afligido pelo procedimento libertino daqueles insubordinados, porque este justo, pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles” (2 Pedro 2:7-8). A mesma aflição está sendo experimentada, neste exato momento, por algum discípulo, em qualquer local do mundo, certamente. 

Então, quer dizer que devemos abandonar nossos familiares? Não!  Precisamos ler e estudar todo o conteúdo do Evangelho pregado por Jesus. E, somente assim, entenderemos que amar a Deus acima de todas as coisas não significa não amar os familiares. Apenas indicará um reajuste de prioridade. Lutar pela causa de Deus é lutar pela causa de nossa família. Nem sempre o resultado sai do jeito que esperamos, mas isso faz parte da vida discipular. A mente de Deus é insondável e, como resultado, ficamos bastante confusos. Por isso, é imprescindível buscar sabedoria em Deus para dar um bom testemunho de Cristo em nossa família.  

 

 

O CUSTO DE LEVAR AS SITUAÇÕES ATÉ O FIM

 

Toda a iniciativa deveria resultar em uma terminativa! A maioria das pessoas sabe disso, e ninguém se sente feliz, ou em paz, ou satisfeito, em ter de começar algo e não o concluir. Assim sendo, é bom pensar no começo, começando pelo fim. Para clarear mais ainda a mente de seus ouvintes, Jesus utilizou dois exemplos que serviram de comparativo para o empreendimento discipular. 

Ele destacou o trabalho de um construtor (vs.28-30), dizendo que nenhum construtor que se preze deve ter a pretensão de construir algo se não sabe se terá dinheiro para terminar. Porque, se começar e não tiver condições financeiras de concluir o que começou, estará à mercê da zombaria e perderá em credibilidade. 

Em segundo lugar, Jesus destaca o trabalho de um rei (vs.31-32). Nenhum rei que se preze deveria sair à guerra sem, antes, calcular o número do exército. Em desvantagem numérica, somente um soberano insensato sairia à batalha. 

Qual o ponto comum entre esses dois exemplos? Qual Jesus enxerga como ponto positivo? O ato de se assentar, em primeiro lugar, e pensar, antes de tomar uma decisão. No caso do construtor, a palavra usada por Jesus que merece destaque é psifizei (contar, calcular, computar ). Mas o que tinha a calcular? A quantidade de dinheiro a ser gasta com material e tudo mais (gr. dapanê). Já no exemplo do rei, usa a palavra boulessetai (deliberar, tomar conselho)  .

Muitos pretensos seguidores de Jesus não estavam totalmente cientes do que acarretaria ser seu discípulo. A sequência de milagres que acompanhava Jesus, sinalizando o Reino dos Céus na Terra, impressionou as pessoas de tal forma que pensavam que todos os seus problemas estariam resolvidos. Uma visão integral do Reino de Deus percebe tanto as nuances festivas quanto as não festivas. Apesar das muitas parábolas comparando o relacionamento com Deus, como o participar de um banquete, Jesus cuidou em afirmar que, na missão de Deus, nem tudo será um banquete. O Senhor está em missão, que é salvar as pessoas dos pecados. Nesse projeto de redenção, todos terão de negar até a si mesmos. 

Nota-se que o empreendimento não é nada fácil. O ser humano tem grande propensão à independência e à liberdade sem limites. E a conclusão de Jesus é de tirar o fôlego: “Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo” (v.33, grifo nosso). Temos, diante de nós, uma impossibilidade categórica. Sem renúncia, não há como ser um discípulo. 

Se assim é, como explicar o grande número de membros nas igrejas, hoje em dia? Será que a evangelização do mundo só tem gerado sucesso? Se o objetivo de Jesus era, de certa forma, dificultar ou destruir as falsas expectativas de alguns seguidores, por que não vemos uma tensão tão dramática, em nossos dias, quanto a tomar a decisão de segui-lo? Talvez Dallas Willard aponte-nos uma direção: 

 

Quem, dentre os cristãos de hoje, é um discípulo de Jesus, em qualquer sentido substantivo do termo ‘discípulo’? Um discípulo é um aluno, um aprendiz – um praticante, mesmo que iniciante. O Novo Testamento – que deve ser nosso princípio norteador no Caminho com Cristo, deixa isso claro. Nesse contexto, os discípulos de Jesus são pessoas que não apenas adotam e professam certas ideias, como também aplicam sua compreensão crescente da vida do reino dos céus a todos os aspectos da vida. Contrastando com isso, a suposição dominante entre os cristãos professores de hoje é de que podemos ser ‘cristãos’ para sempre, sem jamais nos tornarmos discípulos – nem mesmo no céu, pois, afinal, que necessidade teremos de ser discípulos no porvir? Onde quer que estejamos, podemos ver que esse é o ensinamento corrente. E essa é (com suas várias consequências) a Grande Omissão da ‘Grande Comissão’, em que a Grande Disparidade se encontra firmemente arraigada. Enquanto a Grande Omissão continuar a ser permitida ou nutrida, a Grande Disparidade florescerá – tanto na vida de indivíduos quanto em grupos e movimentos cristãos. Logo, se cortarmos a raiz da Grande Omissão, a Grande Disparidade murchará, com foi o caso tantas vezes no passado. Não é preciso lutar contra ela. Basta parar de alimentá-la . 

 

A “grande disparidade” à qual Willard refere-se é a que há entre ser cristão e ser discípulo. Baseado numa pesquisa, Willard constatou que os seguidores de Jesus têm facilidade em aceitar o título de cristãos, mas não o de serem chamados de discípulos. Isso porque acreditam que ser discípulo implica ser um cristão de uma categoria mais elevada. Porém, é um grande equívoco.

 Cabe a nós investigar a nossa decisão, atualmente, e dialogar com aqueles à nossa volta que também estão aspirando ao discipulado. Ninguém, por mais tempo que tenha de caminhada com o Mestre, deve esquivar-se de uma autoanálise. Nós também estamos patentes aos retrocessos e vacilações, nos quais incorreu o primeiro grupo de discípulos. 

 

CONCLUSÃO

 

Apesar do alto preço a ser pago para se tornar um discípulo, a vida discipular também reserva momentos de alegria incomparável. Os discípulos que permaneceram nos passos de Jesus até tiveram as “mãos vazias”, pois deixaram muito para segui-lo (Marcos 10:28). Contudo, seus corações estavam sendo abastecidos pelo gozo do Pai e do Filho (João 17:13). É uma alegria que não depende das coisas, mas flui diretamente de Deus e é derramada no coração do discípulo. É curioso perceber que há certa disparidade entre o grau de coisas que, hoje, somos chamados a abrir mão e o que os primeiros discípulos tiveram de abandonar. A vida discipular tem muitas facetas. Mesmo havendo um chamado geral para que todos “tomem a cruz”, o Senhor tece um plano exclusivo para cada vida, cada personalidade. 

Deixando a questão dos graus de radicalidade de lado, podemos afirmar ainda que jamais devemos pedir desculpas às pessoas a quem evangelizamos pela radicalidade inerente ao discipulado. Jesus conhece o coração de todos melhor do que ninguém. Ser sincero quanto a essa radicalidade é uma ótima prática para hoje em dia. Muitas pessoas, devido ao tipo de cristianismo cultivado nos últimos séculos, acabam por se contentar apenas em “receber a salvação” e confundir a integração numa igreja local com o fim de sua missão ou busca! Como bem disse Dewey M. Mulholland, 

 

Não é suficiente levar pessoas a responder afirmativamente ao convite evangelístico. É preciso que elas se tornem seguidoras de Jesus. Discipulado significa formação espiritual; é o processo para se moldar o caráter e espírito do crente para que seja uma pessoa cuja vida glorifique a Deus. Além disso, prepara o crente para servir ao Senhor, qualquer que seja seu ministério. Jesus não enviou seus apóstolos antes de serem discipulados 

 

É justamente em nossa época que o Evangelho vem sendo mais “barateado”. Os ouvintes atuais, há muito, sentem comichões nos ouvidos; não suportam a cruz que está visceralmente ligada ao discipulado. Dietrich Bonhoeffer assume o posicionamento dos consumidores da ‘graça barata’ e imagina que a questão que eles levantariam seria a seguinte: “Seria, porventura, do interesse da Igreja impor uma tirania espiritual aos seres humanos? Deverá a mensagem da Igreja trazer nova tirania e violência sobre as almas?”. Levando em consideração os sofrimentos, as desilusões e as adversidades, muitos responderiam “sim” a tais perguntas. Mas veja o que Bonhoeffer diz na sequência: “O mandamento de Jesus é duro, desumanamente duro para quem se opõe a ele. O mandamento de Jesus é suave e fácil para quem se sujeita voluntariamente a ele”  . Acredito que nada fará melhor a seu coração, e nada afiará melhor o seu chamado do que terminar esta lição relembrando um trecho do qual o Mestre Jesus, certamente, não mudaria uma vírgula: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lucas 9:23).