Estudo de Texto

Neemias 5:1:

1 FOI, porém, grande o clamor do povo e de suas mulheres, contra os judeus, seus irmãos.

INTRODUÇÃO

O papel de Neemias como líder de um projeto de reconstrução poderia não inspirar tanta confiança. Não podemos esquecer que Neemias era uma pessoa que estava a serviço do Império Persa e que viveu boa parte de sua vida num contexto palaciano. Como poderia o povo judeu confiar nele? Como poderia acreditar que Deus, de fato, lhe havia dado uma visão de restauração?

O fato é que, em cada capítulo deste livro, vemos o nosso personagem principal enfrentando inúmeros desafios, aos quais, pela graça de Deus, vai solucionando um a um. Sem sombra de dúvidas, isso confirmou ainda mais a sua posição de liderança: um líder enviado por Deus.

Hoje vamos analisar o capítulo 5. O problema principal desta seção é a injustiça social cometida por aqueles que deveriam promover a justiça social. Warren Wiersbe nos fornece um bom pano de fundo do que estava acontecendo:

 

Os judeus ricos exploravam os pró¬prios irmãos e irmãs, oferecendo-lhes empréstimos e tomando deles suas terras e seus filhos como garantia (Levíticos 25:39-40). Crianças judias ti¬nham de escolher entre a fome e a servidão! A lei permitia que os judeus emprestassem dinheiro uns aos outros, mas não deveriam cobrar juros como faziam os agiotas (Deuteronômio 23:19-20). Antes, deveriam tratar uns aos outros com amor até mesmo ao tomar algo como garantia (Deuteronômio 24:10-13; Êx 22:25-27) ou tornar um de seus compatriotas um servo (Levíticos 25:35-46). 

 

O que fazer diante de uma situação como essa? Como lutar por um ideal tão nobre como a justiça social, quando a maioria não está compromissada com isto? Vejamos como Neemias enfrentou isso e assim recebamos uma luz para responder às questões levantadas.

 

AS CAUSAS DA INJUSTIÇA

Até o capítulo 4, os registros de Neemias focaram as ameaaças que vinham de fora. No capítulo 5, o grande desafio foram os problemas que vinham de dentro; ou seja, do próprio povo judeu. Infelizmente a vida no exílio acabou por influenciar o dia a dia do povo. O temor ao Senhor já não era algo que estava em alta. O compromisso com a Lei vinha apenas da parte de alguns poucos.

Sem dúvida, esse era um grande desafio para Neemias. Para este homem de Deus a questão principal não era apenas reconstruir um muro. Era reconstruir a identidade de um povo que há muito havia recebido a nomeação de “povo do Senhor”. A reconstrução física e política da nação eram importantes, mas a espiritual tinha precedência e maior relevância. Aliás, os fatores políticos e sociais dependiam essencialmente do fator “fé”.

Em relação a isso, Alfredo dos Santos faz um comentário muito acertado: 

 

As violações econômicas de que os camponeses se queixavam estar sofrendo não podem ser vistas somente do ponto de vista da ameaça à sobrevivência física, embora esse fator seja de fundamental importância. Essas violações devem ser encaradas também do ponto de vista da destituição da identidade do povo judeu, uma vez que os opressores não apenas impediam a boa sobrevivência material de seus compatriotas, mas também ameaçavam a sobrevivência do grupo ao agir em desconformidade com a tradição das relações sociais: agir sem solidariedade e violando a posse da terra que pertencia à família extensa. 

 

Nos versos 1 a 5 temos a descrição detalhada deste amargo problema enfrentado por Neemias. Ele relata, em primeira mão, os três tipos de queixas que chegaram até ele.

A primeira queixa referia-se a uma grande quantidade de famílias que estavam passando fome (v. 2). As possíveis causas talvez fossem a seca e falta de produtividade na lavoura, porque a terra não fora cultivada de forma a suprir a necessidade das centenas de pessoas que voltaram para a cidade, por ocasião da restauração dos muros de Jerusalém. A ordem da cidade e o cotidiano daquelas pessoas ainda não estavam em sua normalidade. 

A segunda queixa estava relacionada com aquelas famílias que tinham propriedades, mas que precisavam hipotecá-las para não morrer de fome (v. 3). As propriedades e os bens eram os pilares de sobrevivência e identidade das famílias e clãs. Possuir um “pedaço de chão” significava muito, tendo em vista que a herança da terra foi uma promessa de Deus. Morar numa terra dada por Deus era um lembrete contínuo do ato de resgate assinalado pelo êxodo. Era o lembrete do quão Deus era bom e misericordioso.

O fato de cada família ter sua herança era tão importante que Deus criou um mecanismo para que esta herança nunca saísse das mãos dos possuidores de origem – o ano do Jubileu. Juntamente com o Jubileu havia também o Ano Sabático (cf. Levíticos 25). Os objetivos destes programas eram o perdão das dívidas, a demonstração de solidariedade para com os necessitados e a reorganização da vida econômica das famílias. Deus realmente desejava o equilíbrio social. Diante deste pano de fundo, não é difícil entender porque a atitude dos magistrados indignou tanto a Neemias. Em sua percepção, o momento não era de exploração, e sim de autodoação. Todos eram irmãos, e não inimigos.

A terceira queixa vinha da parte daqueles que eram obrigados a tomar dinheiro emprestado para pagar impostos ao rei Artaxerxes (v. 4). Isso em si já era um fardo difícil para o povo carregar, ainda mais porque eles estavam numa fase de reestabelecimento político. Os recursos não eram tão abundantes. E, para piorar a situação, os judeus abastados que emprestavam o dinheiro acabavam recebendo os filhos e filhas dos devedores como pagamento da dívida (v. 5). Não poderia haver situação mais caótica do que essa para Neemias. Além da fome e dos impostos, judeus estavam escravizando judeus! A ordem de Deus era clara: “Não oprimais ao vosso próximo; cada um, porém, tema a seu Deus” (Levíticos 25:17; cf. vv. 35-40).

Em suma, a fome era o problema maior. E, atreladas a ela, estavam a penhora dos bens para pagar impostos e a escravidão. Neemias precisava fazer alguma coisa!

 

A REAÇÃO DE NEEMIAS

Ao tomar conhecimento da situação, Neemias teve duas reações. Em primeiro lugar, ficou muito aborrecido, irritado, furioso (v. 5). A palavra hebraica chara, traduzida por “furioso”, traz o sentido de “estar quente, tornar-se irado, inflamar-se”. Claro que não foi um acesso de raiva pecaminoso, mas uma expressão de indignação justa diante da opressão imposta aos seus irmãos. 

Realmente foi um duro golpe para Neemias. Isso deve ter provocado um amargo em seu íntimo. Ele já estava bastante ocupado com as ameaças externas. Os inimigos acumulavam conspirações. O muro precisava ser terminado o quanto antes. Mas, com seus trabalhadores naquela situação, não haveria condições de a reconstrução do muro seguir.

Em segundo lugar, depois de ficar furioso, Neemias se pôs a pensar sobre a situação. Ele nos conta como esta enxurrada de queixas invadiu sua mente e que teve de considerar consigo mesmo a respeito de tudo aquilo que ouvira (v. 6). O termo hebraico para considerar ou pensar, conforme usado no texto, significa “aconselhar a si mesmo”.  Neemias não agiu baseado na precipitação.

Então, depois de muito pensar sobre o assunto, Neemias decide repreender os nobres e magistrados (v. 7). Ele age com base naquilo que faltava a estes: o temor ao Senhor! Repreender os magistrados poderia ter atraído mais problemas para Neemias. Os nobres (empresários da época) simplesmente poderiam ter abandonado a obra. Contudo, Neemias não adota uma diplomacia ou uma política governamental em que tenha que abrir mão de um princípio tão importante como o do temor ao Senhor. Ele não queria ser estratégico, ou esperto, ou um simples porta-voz da pacificação. Ele estava decidido em seu coração a ser obediente a Deus! Foi isso que fez toda a diferença.

Decidir obedecer a Deus e fazer o que é certo pode nos colocar em situações arriscadas. Teremos o risco de perder simpatizantes de nossa visão, o risco de perder investidores ou patrocinadores, risco de perder amigos e o risco de ficar sozinho lutando contra a correnteza. Seja qual for o contexto, opte pela obediência. Deus não lhe prometeu manter, em todo tempo e o tempo todo, “bons ventos” que venham a conspirar sempre a seu favor. Não se esqueça de que o objetivo de Deus em algumas situações é nos provar, e não nos fazer triunfar. O que ele prometeu é que estará com você em todo tempo e o tempo todo. Ele nunca te abandonará!

Neemias zangou-se porque as autoridades haviam esquecido a Lei de Deus, que preservara a Israel, ensinando-os a viver de maneira justa e piedosa como família. As tribos de Israel deveriam viver de modo diferente dos demais povos, em vista das instruções pes¬soais que Deus lhes dera. Os escolhidos estavam enfren-tando problemas nos dias de Neemias por terem deixado de seguir as instruções. Como seria bom se os cristãos do século XXI prestassem maior atenção às diretrizes de Deus! 

Depois de repreender os nobres e magistrados, Neemias convoca uma assembleia oficial para tratar do terrível problema de proporções sociais que estava assolando o povo (v. 7). Ele era um homem precavido. Naquele contexto, não poderia se dar ao luxo de cometer erros. É possível que o motivo de ter convocado uma assembleia fosse para mostrar às famílias carentes que ele não concordava com aquele tipo de extorsão. E, também, para mostrar aos nobres e magistrados que, como governador, não estava disposto a tolerar tamanho descaso social.

A repreensão de Neemias foi tácita e sem rodeios. Em seu discurso público, ele faz questão de assinalar a gravidade daqueles atos (v. 8). A primeira atitude dele foi relacionar aquele tipo de conduta como uma desobediência direta contra a lei de Deus (cf. Êxodo 22:25; Levíticos 25:35-40; Deuteronômio 23:19-20). É preciso salientar que o empréstimo em si não era errado. Ele era permitido nas negociações com estrangeiros (Deuteronômio 23:20). O ponto em questão aqui é que isso não deveria ser feito entre israelitas, ainda mais numa situação angustiante. 

Neemias mostrou para os nobres e magistrados que escravizar seus próprios conterrâneos não era um “nicho de oportunidade”. Neemias queria aferir o tipo de caráter daqueles homens que viriam compor a sociedade restaurada. O povo já havia sido espoliado por demais. Quando este tipo de golpe vem do inimigo é uma coisa, mas quando vem do amigo é terrível, é desnorteador (Cf. Salmos 55).

O que aqueles oprimidos poderiam esperar do futuro se isso continuasse? Como acreditar no fortalecimento de uma nação se seus próprios constituintes exploram uns aos outros? Contudo, Neemias é um homem de pulso firme. Sabia que não poderia tratar isso com “panos mornos”. Aqueles usurários até poderiam achar tudo aquilo normal. Porém, diante de Deus, não era. Percebamos como este problema de ordem social estava enraizado numa questão de ordem religiosa, ou seja, de fé.

Sem sombra de dúvidas, uma das tarefas mais difíceis de um líder é a de ter de confrontar seus liderados. Ninguém gosta de ser repreendido, mas o sábio acatará aquilo que vem para o seu crescimento pessoal. E a confrontação, às vezes, se faz necessária. Como poderiam eles, depois de resgatarem aqueles oprimidos da opressão dos estrangeiros, fazê-los escravos em sua própria terra? Isso era o cúmulo da injustiça contra aquelas pessoas. Aqueles homens estavam sem o temor a Deus no coração. Estavam cegos à verdadeira justiça numa situação como aquela. Para envergonhá-los ainda mais, Neemias faz questão de mostrar o seu exemplo (v.10), e que sua prática estava de acordo com a lei (Deuteronômio 15:2).

Há ocasiões em que uma ação pode ser legalmente correta, mas moralmente inoportuna. A gravidade da pobreza do povo exigia dádivas e não empréstimos. Por isso, Neemias faz um apelo dizendo: “E agora vamos perdoar essa dívida” (v. 10, NTLH). Ele se inclui. Em seguida, convoca os ricos opressores a decidir: “Restituí-lhes hoje, vos peço, as suas terras, as suas vinhas, os seus olivais e as suas casas, como também o centésimo do dinheiro, do trigo, do vinho e do azeite que exigistes deles” (v. 11). E eles se comprometeram (v. 12). Porém, Neemias queria que assumissem compromisso oficial diante das autoridades competentes: “Então, chamei os sacerdotes e os fiz jurar que fariam segundo prometeram” (v. 12). A injustiça afetava a todos; por isso, as decisões deveriam ser públicas. Qualquer pendência serviria de argumento para não se cumprirem as decisões; então, nada ficou para depois. 

 

A REAÇÃO DOS NOBRES E MAGISTRADOS

A primeira reação dos judeus ricos foi o silêncio: “Então, se calaram e não acharam o que responder” (v. 9). Como poderiam responder a tão contundente, desmascarante e verdadeira acusação? A segunda reação, mediante orientação e requisição de Neemias, foi a restituição imediata das propriedades penhoradas e o anulamento da cobrança do “centésimo do dinheiro” (v. 12).  A última reação dos magistrados foi confirmar suas palavras com um juramento diante dos sacerdotes (v. 12). Neemias é preventivo. Ele sabe que, em tempos de angustia e caos, o sistema de valores de uma pessoa ou grupo de pessoas pode cair em frouxidão. Ele revela-se um grande líder político, pois requer de seus governados um compromisso real perante os homens e perante Deus.

Tudo, pois, foi restituído aos oprimidos (v. 13). Agora o povo teria alento contra suas mazelas. A fome e a desigualdade social – onde ricos ficam mais ricos e pobres ficam mais pobres - não seriam mais um problema para Neemias. Este homem, enviado por Deus para reconstruir a cidade de Jerusalém, não transigia com o engano. Mostrou-se um verdadeiro líder servo de resoluto caráter. Ele era empático com a dor de seu povo e, por isso, agiu em prol de seus irmãos.

Depois da confirmação do juramento feito diante dos sacerdotes, o relato bíblico diz que toda a congregação deu um uníssono “amém” (v. 13) e louvou ao Senhor. O líder íntegro deve ser conhecido por aquilo que faz. Uma das grandes marcas da liderança de Neemias se destaca quando: 

 

Ele transformou clamor em louvor. O povo começou com um clamor cheio de dor por causa da opressão e terminou louvando a Deus cheio de alegria. A crise é uma encruzilhada que a uns abate, a outros exalta. Uns olham o problema, outros a oportunidade. Uns veem as dificuldades, outros a solução. O clamor tornou-se uma reunião festiva de louvor. Por quê? Porque Neemias teve a capacidade de se indignar, confrontar, exemplificar, pedir restituição e dar exemplo. 

O EXEMPLO PESSOAL DE NEEMIAS

Do verso 14 em diante, temos uma nota biográfica sobre Neemias. Isso pode dar a impressão de que ele queria “aparecer”. Contudo, não devemos pensar dessa forma. Esta nota biográfica tem por objetivo atestar a integridade de caráter de Neemias.

Diante de todas as injustiças, Neemias se portou de maneira exemplar. Preocupou-se mais com os interesses dos outros do que com os seus. Brilhante é a sua declaração esclarecendo a diferença entre si e seus antecessores. Suas palavras são poucas: “Porém eu não fiz assim” (v. 15). Neemias não foi o tipo de líder que criticava os outros e fazia igual. O líder egoísta explora os outros para que as coisas aconteçam do jeito que ele quer; coloca-se como o centro das atenções e insiste em que tudo deva acontecer do seu jeito e no seu tempo. Neemias não era o tipo que se preocupava com o que era popular; sua preocupação era fazer o que era direito. Ele agia diferentemente “por causa do temor de Deus” (v. 15). Sua fé o levava a escolher o que é certo. 

Neemias foi servo do povo e não explorador deste. Ouviu-lhe as queixas, mobilizou-o, protegeu-o, saiu em sua defesa e lidou sabiamente com o problema. Ele quebrou o ciclo de corrupção rompendo com os costumes tradicionais (vv. 14-15), fez reforma de contenção de gastos e se colocou como o primeiro da lista (v. 16); seus moços, ao invés de explorar os outros, trabalharam. Neemias pagou com seus recursos as despesas do governo, sem cobrá-las dos cofres públicos (vv. 17-18). Agindo assim, abriu mão de direitos garantidos: “nem por isso exigi o pão devido ao governador, porquanto a servidão deste povo era grande” (v. 18).

De acordo com a Lei, o temor ao Senhor deveria ser o fator motivador para o livre fluxo da solidariedade entre as famílias e clãs. Mesmo depois de muito tempo, já num contexto pós-exílio, o temor ao Senhor ainda continua sendo uma matéria de suma importância. Se a nação de Israel quisesse se reerguer, precisaria ser regida pelo temor.

Então, o que Neemias faz é como se fosse uma prestação de contas. Ele quer deixar claro para o povo que ele fez diferente dos outros que governaram antes dele. Suas intenções eram nobres. Ele não veio para acrescentar mais cargas aos ombros do povo, mas, sim, para se juntar a ele.

 

CONCLUSÃO

Devido à proliferação das injustiças sociais que nos vitimizam, ou nos levam a fazer vítimas, muitos têm perdido a esperança. O capítulo 5 de Neemias nos ensina que pior do que a injustiça praticada pelos ímpios é a injustiça praticada pelos que professam fé em Deus!

Infelizmente, a falta de um compromisso com os valores do Reino tem aberto portas para este tipo de cristianismo “anômalo”. Entretanto, nosso texto também nos ensina que nem tudo está perdido. Se tão somente nos humilharmos e concertarmos nossas veredas hoje, o Senhor nos abençoará e transformará uma situação de clamor em um momento de louvor e alegria.