Texto de Estudo: Mateus 5:17-26

Nosso mundo já foi palco de muitas coisas ruins. Pense, por exemplo, no sistema de separação racial que vigorou por 46 anos na África do Sul (de 1948 a 1994). Essa política foi adotada pelo Partido Nacional do país, que era composto por minoria branca. As consequências disso levaram brancos e negros a lados opostos da vida. Os negros não podiam frequentar o mesmo lugar que os brancos, andar no mesmo transporte público que os brancos, ter a mesma educação deles e nem receber os mesmos serviços de saúde. Não era de se estranhar que a violência impulsionada pela ira surgisse como reação a tais procedimentos.

Com isso, podemos descobrir que manter distância das pessoas não é algo determinado apenas por posicionamento geográfico, cor da pele ou condição financeira. Manter distância das pessoas é algo que nasce na mente, pois é no coração que se constroem os conceitos sobre elas. Esses conceitos afetarão diretamente a maneira como as veremos e como as trataremos.

Nosso texto de hoje fala da nossa relação, ou nossa comunhão, com o próximo sob a luz do sexto mandamento; vai destacar uma das grandes ameaças a essa comunhão e, assim, revelará o ponto central do ensinamento de Jesus. Ou seja, descobriremos que o homicida não é apenas o que fere fisicamente com armas ou golpes, mas o que fere com a raiva do coração! Depois disso, Jesus aponta a saída para que isso não aconteça.

Cumprindo a Lei

A maneira profunda de se interpretar a Lei, por parte de Jesus, atraiu o desafeto dos escribas e fariseus. Não seria difícil, para os opositores de Cristo, dizerem que Ele estava agindo contra a Lei. Sabedor disso, o Mestre dá uma explicação importante sobre sua relação para com a Lei. Em vez de anular a Lei, Jesus veio confirmá-la por meio de sua pessoa e obra (v. 17). Ele veio resgatar o entendimento mais profundo da Lei, que já há muito tempo estava debaixo dos escombros da velha tradição farisaica. Para Jesus, a Lei era tida em tão alta importância que Ele afirmou que quem violasse qualquer mandamento e assim ensinasse ao outro seria considerado o menor no reino dos céus (v. 19). Essas palavras serviram apenas de introdução para o que se segue.

Atos injustos merecem julgamento

Jesus começa sua fala partindo do ponto de compreensão dos escribas e fariseus. E, ao fazer isso, Jesus queria revelar um erro de extensão na aplicação do sexto mandamento. Isso mesmo! Ao que parece, o que vinha sendo dito aos antigos era nada mais do que uma visão restrita da quebra do mandamento. Segundo essa compreensão, só transgrediria esse mandamento quem concretizasse um ato de ferir de morte o seu próximo. Então,o objetivo de Cristo era justamente fazer uma análise mais detida do sexto mandamento.

Ao revelar tal extensão restrita da aplicação do mandamento, Jesus põe em foco o tipo de justiça exercida pelos escribas e fariseus. A base para isso está nas palavras que introduzem o nosso texto: se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus (v. 20). Se porventura alguém quisesse saber, na prática, uma das maneiras de uma pessoa ser justa com relação ao seu próximo, então não deveria cometer homicídio.

Entretanto, a compreensão farisaica não conseguia detectar as profundas implicações relacionadas àquele mandamento. É nesse sentido que Jesus exortou seus ouvintes a terem uma justiça que vá além da dos escribas. Mas como isso poderia ser? Como um pescador como Pedro, por exemplo, poderia exceder em justiça a um fariseu que fez do estudo dos mandamentos de Deus o propósito de sua vida? Isso nos leva ao nosso próximo ponto.

Sentimentos injustos merecem julgamento também

O próximo passo de Jesus é levar seus seguidores a um entendimento mais profundo da Lei. Ao usar a expressão eu, porém, vos digo significa que há uma compreensão mais profunda desse mandamento que não está sendo percebida e nem praticada. Enquanto muitos estavam preocupados com a forma, Jesus intencionava revelar o conteúdo daquele mandamento.

O grande ponto revelado por Jesus é que a verdadeira fonte do homicídio é a ira, ou a raiva, quando alojada no coração (cf. Gênesis 4:7). O homicídio é parte final do processo de raiva. Claro que nem todos chegarão a essas consequências. Porém, segundo Jesus, o começo do processo já é tão digno de julgamento quanto o seu desfecho. Cristo afirmou isso quando disse que todo aquele que [sem motivo]66 se irar contra seu irmão67 estará sujeito a julgamento (v. 22a).

Até aqui, o Mestre está focando apenas na atitude interior. Contudo, Ele avança mais um passo e aponta como a raiva alojada no coração ganha corpo e ação. Primeiro, Ele diz: Também, qualquer que disser a seu irmão: "Racá", será levado ao tribunal (v. 22b, NVI). Esse tribunal de julgamento possivelmente era o Sinédrio. A palavra racá era uma ofensa forte no contexto judaico. A ideia que a palavra transmite é de desprezo, como se alguém fosse um "cabeça vazia", "um idiota" ou "inútil".

Na sequência, Jesus disse: E qualquer que disser: "Louco", corre o risco de ir para o fogo do inferno (v. 22c,NVI). Cristo apresenta um contraponto interessante quanto ao tipo de julgamento recebido; isto é, se uma ofensa como racá já era digna de merecer um julgamento no tribunal humano (Sinédrio), uma ofensa como "louco" (insensato) já era suficiente para merecer a sentença do tribunal divino! Jesus revela a face oculta, ou sutil, da raiva. Quem poderia imaginar que uma simples ofensa sujeitaria alguém ao fogo do inferno! Não seria estranho se alguns estivessem achando Jesus mais radical do que os próprios fariseus. Contudo, essa era a verdade do reino!

E agora? Desse jeito vai todo mundo para o inferno, pois quem nunca se encolerizou contra alguém? Aqui é que se revela a graça maravilhosa de Jesus. Se alguém cair nessa transgressão tem a seguinte orientação do Mestre: reconcilie-se o quanto antes! (v. 24). Entretanto, Ele não disse isso de forma seca e direta, mas usou duas ilustrações fantásticas.

A primeira diz respeito ao momento da adoração (vv. 23,24). A orientação é para que seja interrompido o momento de ofertar a Deus para buscar a reconciliação. Aqui a ação e o tempo estão relacionados. Nas palavras de John Sttot: "Não espere até que o culto termine. Procure seu irmão e peça-lhe perdão [...]. Primeiro vá reconciliar-se com o seu irmão, depois venha e ofereça sua adoração a Deus".69 O que podemos aprender é que nossa comunhão com o irmão precede nosso culto a Deus. De que adianta oferecer a Deus sacrifícios de louvor se estamos inimizados com o nosso irmão? Uma coisa importante: nós não precisamos ser o ofensor; isto é, temos de ir ao irmão ou irmã mesmo que a culpa não tenha sido nossa.

A segunda ilustração se refere a um ambiente diferente daquele da adoração. Jesus sai do ambiente religioso e vai para o ambiente civil, cotidiano, e diz para seus discípulos que, se um adversário estivesse pretendendo mover alguma ação judicial contra um deles, então deveriam entrar em acordo com ele, no momento oportuno: enquanto estás com ele a caminho (v. 25). A orientação é certeira, pois depois que as etapas do processo judicial começassem não haveria mais o que fazer. Categoricamente, Cristo afirmou: não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo (v. 26). Como a palavra para "adversário" também traz a ideia de "inimigo", possivelmente os não judeus estavam em foco aqui. Se assim for, então Jesus revelou de maneira radical aos discípulos quão elástica deveria ser a ação de buscar comunhão com a outra pessoa.

Concluindo, não fique preso ao contexto cultural da época de Jesus, pois Ele apenas forneceu alguns exemplos que seriam facilmente assimilados por seus ouvintes. Ao responder as perguntas dessa lição, situe-as em seu próprio contexto. Outra pergunta pode ser feita, como por exemplo: Quem é meu adversário hoje? O importante é que você veja a esplêndida aplicação que Cristo fez do sexto mandamento e de como tal preceito divino pode ser aplicado à sua vida. Viva como um súdito do reino. Seja um perdoador!

 

66 As palavras adicionais "sem motivo" aparecem na maioria dos manuscritos gregos, mas não nos melhores. Provavelmente, pertencem a um comentário posterior e, portanto, foram omitidas nas revisões e traduções modernas.

67 Num primeiro momento, a palavra "irmão" pode estar se referindo apenas aos judeus. Contudo, no contexto mais amplo do Sermão do Monte, vemos que esse "irmão", ou "próximo", recebe um conceito mais amplo, ou seja, o alargamento do amor aos gentios (cf. Mateus 5:43-48).

68 DOUGLAS, James Dixon; SHEDD, Russel Phillip (Eds.). Obra citada, p.1.365.

69 STTOT, John R. W. Contracultura cristã: a mensagem do sermão do monte. São Paulo: ABU Editora, 1981, p. 40,41.

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