Texto de Estudo

1 Coríntios 12:28:

28 E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas.

INTRODUÇÃO

Nossa lição de hoje abordará o dom de profecia. Juntamente como dom de línguas, ele tem sido um dos mais abordados e debatidos. Desde a segunda década do século XX, o Brasil vem sendo palco de expansão das igrejas de movimento pentecostal carismático. Ocupando o mesmo terreno que as mais diversas igrejas de linha conservadora ou tradicional, não é de se estranhar que o debate originasse divisões e rendesse alguns rótulos indigestos, tanto para um lado quanto para o outro. Mas como devemos tratar esta questão? Os tópicos a seguir tentaram responder esta pergunta.

 

DEFINIÇÃO

No Novo Testamento, a palavra grega para profeta é prophetes. Palavra formada pelo prefixo pro (que significa ‘antes’ ou ‘por’) e pela raiz phemi (que significa falar).  No Antigo testamento havia três palavras que remetiam à função ou à característica da pessoa do profeta: navi, ro’eh e hozeh. A palavra navi era a de uso mais frequente e transmitia a atribuição de quem era “chamado”. Outro título dado às profetas era “vidente” (ro’eh). O profeta era o porta-voz de Deus. Ele jamais expressava sua opinião própria.  Isso, obviamente, não eliminava ou deixava em suspensão a personalidade do profeta. Como bem colocaram André Lamorte e Gerald Hawthorne: 

 

A inspiração, porém, não suprime a individualidade. É o milagre da theopneustia (2 Timóteo 3:16). Para comunicar seus pensamentos aos homens, Deus usa pessoas de cultura, caráter e posição social diferentes, a fim de que a sua palavra seja acessível a todos os homens. A inspiração salvaguarda a individualidade (cf. Moisés em Êxodo 3; Jeremias em Jeremias 20:14-18, etc.). 

Os profetas foram homens escolhidos por Deus, para serem canais da manifestação de sua vontade à humanidade. Foram instrumentos poderosamente usados e através destes, a glória do Senhor por diversas vezes foi manifestada.

 

A PESSOA DO PROFETA E O EXERCÍCIO PROFÉTICO NO ANTIGO TESTAMENTO

A figura do profeta estava atrelada a todo um contexto. Sua mensagem, os receptores de sua mensagem e a situação da vida do povo de Deus (espiritual, social e política) serviam de panorama para seu surgimento. Geralmente seu chamado surgia quando o relacionamento de Deus com o povo estava em crise.

Apesar de, em tempos de desobediência, ou seja, em tempos de associação com a idolatria, a monarquia ter mantido uma classe de profetas sustentada pelas expensas da coroa (como foi o caso na época de Acabe), os profetas levantados por Deus não eram de maneira alguma “funcionários” do rei. Os profetas respondiam diretamente a Deus. Tanto que muitas de suas mensagens visavam expor as feridas do rei e de seus súditos. Algumas mensagens proféticas também foram direcionadas ao povo. Contudo, não variavam quanto à essência do conteúdo. 

Outra característica importante da mensagem profética era o elemento preditivo. Por isso que eles eram chamados de videntes também. Esse parece ser o aspecto que mais chama a atenção dos leitores em geral. Porém, o que a maioria esquece é que estas predições não visavam a saciar uma curiosidade fútil. A predição profética bíblica em Israel estava acima de um mero “prognosticismo” carnal. O foco do profeta estava em primeira instância no presente. Se Deus lhe dava uma visão do futuro então era porque o Senhor esperava que a situação presente mudasse. Nunca era uma questão do futuro pelo futuro. Deus esperava arrependimento e santidade prática.  Uma maneira de testar o profeta era se sua previsão se cumpriria ou não. 

Mais uma característica da mensagem profética era o teor apocalíptico (com mais proeminência em Daniel, Zacarias). Este gênero de difícil compreensão trazia mensagens impactantes. O modo de transmissão era variado e vinha através de visões, sonhos e até encenações (Ezequiel 12). Em relação a predições é importante destacar que o profeta nem sempre via o cumprimento de sua mensagem para sua época. Pela perspectiva humana até se esperava por algo num futuro mais imediato. Porém, Deus, o Senhor da História, tinha outros planos. Podemos mencionar aqui a profecia de Joel que se cumpriu no Pentecostes, segundo o apóstolo Pedro. E nascimento de Jesus segundo o Evangelho de Mateus. 

De posse destas informações genéricas, podemos transitar para nosso próximo ponto. E tentar detectar algumas semelhanças e diferenças entre o exercício profético no Antigo e no Novo Testamentos. 

 

A PESSOA DO PROFETA E O EXERCÍCIO PROFÉTICO NO NOVO TESTAMENTO

A não proeminência de profetas no Novo Testamento de maneira nenhuma deve nos levar a uma mentalidade ou a uma leitura de ruptura entre Antigo e Novo Testamento. Lembremo-nos de que o Novo Testamento está repleto de citações e alusões ao Antigo Testamento. Provando assim que seu intuito não é fazer uma substituição ou rompimento, mas revelar a unidade entre os dois testamentos. Contudo, é preciso ressaltar que no plano revelatório de Deus estava embutida uma linha de expansão espiral ou progressiva. Logo é preciso trabalhar cautelosamente com a relação entre continuidade e descontinuidade. Ou seja, há semelhanças, mas também há diferenças entre os profetas do Antigo e os do Novo Testamento. 

No Novo Testamento encontramos relatos de pessoas que foram identificadas como “profetas”. Temos Ágabo (Atos dos Apóstolos 11:28; 21:10,11), as filhas de Filipe (Atos dos Apóstolos 19:6) e alguns homens e mulheres da igreja em Corinto (1 Coríntios 11:4-5). Em sua primeira carta aos Coríntios, Paulo discorre sobre os dons espirituais (1 Coríntios 12; 14). Ali ele apontou para um grupo especial sobre o qual repousaria o dom de “profecia”. Tendo assim um ministério específico. Tais ministros não trabalhavam sozinhos. Em Atos dos Apóstolos 13:1 somos informados de que, na Igreja de Antioquia, os profetas exerciam seu dom em conjunto com alguns “mestres”. Como ambos os dons (o do profeta e do mestre) tinham em comum a comunicação e a interpretação das Escrituras fica fácil entender porque eles estavam juntos. 

O fato de o profeta do Novo Testamento exercer o seu ministério dentro da igreja local já aponta para uma diferença em comparação com os profetas da antiga aliança, os quais falavam a toda a nação de Israel, ou de Judá, (uma nação ou Estado com sede de governo e independente). Outra diferença que podemos mencionar é que no Novo Testamento não temos registros de que os que tinham o dom de profecia recebiam uma mensagem diretamente de Deus. Nem lemos sobre os marcantes pronunciamentos “assim diz o Senhor”. 

Agora destaquemos um ponto de semelhança. Assim como acontecia com os profetas do Antigo Testamento, encontramos em Atos pelo menos um profeta comunicando via elemento preditivo. Ágabo ganha destaque na narrativa de Atos por ter predito uma fome e a prisão de Paulo. Quanto ao conteúdo das predições e proclamações dos demais profetas ou profetisas no Novo Testamento, nada podemos afirmar. Infelizmente muita confusão é feita no seio de muitas igrejas hodiernas quanto a este dom por causa do elemento preditivo. Para nos esquivarmos desta nuvem de confusão, uma boa dica é considerar o seguinte: apesar de a profecia de Ágabo ter falado de situações muito específicas  (a fome e a prisão de Paulo), isso não nos autoriza ou estabelece uma norma para a igreja de hoje. A principal tarefa do profeta da antiga aliança era exortar o povo à obediência. Nada do que foi dito estava alheio ao que já havia sido revelado a Moisés. Podemos dizer que o mesmo se aplica aos profetas da nova aliança. Isto é, nada do que os profetas da igreja local dissessem deveria ir além ou aquém da revelação divina, previamente concedida. Os profetas neotestamentários não podiam colocar outro fundamento além do que já estava posto: a lei e os profetas (da antiga aliança). A linha de delimitação do exercício do dom de profecia na Igreja Primitiva era clara. 

Veja, por exemplo: em 1 Coríntios 14:29 é dito que o profeta não poderia dizer algo sem o juízo crítico dos demais que estivessem presentes nas reuniões (ou cultos). Paulo nos concede mais evidências desta ideia em Efésios 2:20 quando aponta este fato como elemento regulador da fé da Igreja local: “o fundamento dos apóstolos e profetas”. O fato de Paulo mencionar “apóstolos e profetas” e não “a lei e os profetas” não significa alteração. Mas, sim, assimilação. O exercício apostólico foi legitimado por Cristo. E como Jesus foi claro ao afirmar que veio cumprir e não revogar a lei e os profetas, nada mais lógico do que ver seus seguidores tomando parte no mesmo fundamento outrora estabelecido na antiga aliança. Profetas como Ágabo e os demais não traziam ou eram fontes de novas revelações. No contexto da Igreja Primitiva, a exortação para que houvesse profecias não era para que os profetas “desejassem a notoriedade de inovadores doutrinais, mas antes que contendessem zelosamente pela verdade uma vez por todas entregue aos santos”.  O dom de profecia na Igreja Primitiva objetivava edificar, exortar e consolar (1 Coríntios 14:3). Estes objetivos estavam ancorados na Lei, nos profetas e nos salmos. 

 

EXISTEM PROFETAS HOJE?

Isso vai depender de como entendemos a pessoa do profeta e seu papel. Alguns são da vertente de que não há mais profetas, seja nos moldes do Antigo Testamento ou nos moldes do Novo Testamento.  Outros dizem que há espaço para o dom profético, mas não no mesmo formato em que se deu na época da Igreja Primitiva. Particularmente, compreendo conforme esta última, e com muita cautela e ressalvas, se necessário, pois há muita confusão no que diz respeito à abordagem deste assunto. Necessário se faz evitar os extremos, quais sejam: acreditar que nenhum resquício daquele dom profético exista hoje ou que tudo o que estava relacionado ao exercício profético daquela época é 100% aplicado hoje, sendo, portanto, uma norma para a igreja de todas épocas. 

Levando fortemente em consideração o que Paulo disse sobre os objetivos do dom de profecia (1 Coríntios 14:3), é possível que o dom profético de hoje seja exercido não só por pastores, como também por outros membros da igreja, não obstante, é bom salientar ser condição indispensável o ser cheio do Espírito Santo. A razão para tal abertura interpretativa reside no fato de que a função do profeta nunca está relacionada restritivamente a predições futurísticas e “novas revelações”. Tomando como base o exercício do profeta do Antigo e do Novo Testamentos veremos que: 

a) Eles comunicavam a verdade de Deus de forma inteligível. Eles recebiam de Deus os norteadores princípios espirituais e éticos, e os retransmitiam ao povo do Senhor. Isso não tem que acontecer apenas por comunicação direta de Deus “face-a-face”. O expositor da Bíblia, ou intérprete atual, pode comunicar esta mesma verdade, uma vez que ainda há uma faceta do dom de profecia que é voltado para os crentes hoje. A edificação tem sua validade para a igreja contemporânea assegurada pelo que Paulo disse em Efésios 4:7-16. O corpo de Cristo ainda está em franco crescimento. Todas as partes precisam estar bem ajustadas e consolidadas pelo auxílio de juntas. Mesmo que a enumeração de Paulo tenha recaído sobre pessoas que estão em posição de liderança (Efésios 4:11), nada impede de sustentarmos que professores de escola bíblica, conselheiros, anciãos, jovens, crianças, homens, mulheres também sejam instrumentos para edificação (Efésios 4:4-6). Todos, quer tenham cargos oficiais ou não, devem servir-se da Bíblia para ensinar algo que tenha como fim o aperfeiçoamento dos demais no Corpo de Cristo. O mesmo pode ser dito sobre a exortação e consolação. 

b) A outra possível faceta do dom profético que ainda é atual para a igreja de hoje é a ministração da Palavra aos incrédulos. A Bíblia diz: “Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencidos e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de vós” (1 Coríntios 14:24-25). Como o profeta é portador de uma mensagem que põe em relevo a verdade de Deus, é natural que em sua vocação ele assuma uma posição contracultural ao mundo. Isso está de pleno acordo com o que João disse: “Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior aquele que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por esta razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro” (1 João 4:4-6). Nesta mesma linha afirma Heber Carlos de Campos: “É necessário lembrar que uma das funções proféticas é trazer uma mensagem ética, levando os homens ao verdadeiro caminho de Deus, instando-os a abandonarem os seus maus caminhos”.  

 

CONCLUSÃO

Assim como na época do Antigo Testamento e da Igreja primitiva, em que havia exageros concernentes à pessoa do profeta e à sua mensagem, o mesmo pode ser visto hoje. Muitos continuístas que são proponentes e participantes dos movimentos carismáticos têm se revelado ousados demais. Proferindo “palavras proféticas” sobre pessoas da igreja, ou sobre perseguidores dela, as quais não têm se cumprido. Sei que muitos contra-argumentam que o fato de existirem exageros não invalida a contemporaneidade deste tipo de dom. Mas esta queixa não resolve a questão. Líderes e “vasos ungidos” têm tomado este dom “pelo laço” e estão brincando com algo que não deveriam. Ouvem-se ou leem-se relatos de como o “dom de profecia” está relacionado a particularismos da vida pessoal (prosperidade material, pessoa com quem deve se casar, o dia certo que se deve fazer uma viagem etc.). Mesmo que alguns arroguem o patrocínio da edificação e exortação sobre estas palavras proféticas, é bom mantermos cautela. Sem querer limitar Deus a um determinado tempo ou época, entendo que a época da igreja primitiva se revestia de caráter especial. Hoje nós já temos o cânon do Antigo e do Novo Testamento ao nosso dispor. Tudo que é essencial para nossa salvação e propósito de vida está lá. 

Arrazoemos por um pouco e vejamos se não está havendo uma “naturalização” do dom sobrenatural da profecia. Não posso finalizar dizendo outra coisa a não ser: sejamos cautelosos, pois nem tudo que brilha é ouro.