Filemom 1:8-19:

8 Por isso, ainda que tenha em Cristo grande confiança para te mandar o que te convém, 9 Todavia peço-te antes por amor, sendo eu tal como sou, Paulo o velho, e também agora prisioneiro de Jesus Cristo. 10 Peço-te por meu filho Onésimo, que gerei nas minhas prisões; 11 O qual noutro tempo te foi inútil, mas agora a ti e a mim muito útil; eu to tornei a enviar. 12 E tu torna a recebê-lo como às minhas entranhas. 13 Eu bem o quisera conservar comigo, para que por ti me servisse nas prisões do evangelho; 14 Mas nada quis fazer sem o teu parecer, para que o teu benefício não fosse como por força, mas, voluntário. 15 Porque bem pode ser que ele se tenha separado de ti por algum tempo, para que o retivesses para sempre, 16 Não já como servo, antes, mais do que servo, como irmão amado, particularmente de mim, e quanto mais de ti, assim na carne como no SENHOR? 17 Assim, pois, se me tens por companheiro, recebe-o como a mim mesmo. 18 E, se te fez algum dano, ou te deve alguma coisa, põe isso à minha conta. 19 Eu, Paulo, de minha própria mão o escrevi; eu o pagarei, para te não dizer que ainda mesmo a ti próprio a mim te deves.

Esta pequena Carta a Filemom é única particular de Paulo que possuímos. Sem dúvida alguma que Paulo deve ter escrito muitas cartas particulares; e sem dúvida que estas cartas sofreram o destino de todas as cartas particulares; o mais provável é que fossem destruídas; e de todas elas só sobreviveu a carta escrita a Filemom.

À parte da graça e encanto que a enchem, o fato de ser a única carta particular escrita por Paulo que possuamos, dá a esta um interesse e um significado sem igual. A Carta a Filemom é extraordinária devido ao fato de que nela vemos a grandiosa imagem de Paulo pedindo um favor. Nenhum homem pediu menos favores que Paulo, mas nesta epístola pede um, nem tanto para si mesmo, senão para Onésimo, que tinha tomado um caminho equivocado e a quem Paulo estava ajudando a encontrar o caminho de retorno.

O próprio começo da Carta é incomum. Paulo geralmente se identifica a si mesmo como um apóstolo; mas nesta ocasião escreve como um amigo a um amigo e ele deixa de lado o título oficial. Não escreve como "Paulo o apóstolo", mas sim como "Paulo o prisioneiro de Jesus Cristo". Desde o começo Paulo deixa de lado toda alusão a sua autoridade e apela só à simpatia e ao amor.

Filemom era sem dúvida um homem a quem era fácil pedir um favor. Era um homem cuja fé em Cristo e cujo amor pelos irmãos eram conhecidos por todos (v. 5), e o relato deles tinha chegado até Roma, onde Paulo estava encarcerado. Sua casa deve ter sido como um oásis no deserto, porque, como diz Paulo, tinha confortado os corações dos crentes (v. 7).

Paulo, por ser considerado um apóstolo do Senhor, poderia ter ordenado o que desejava que Filemom fizesse, mas só faz um humilde pedido. E, ele complementa: "prefiro, todavia, solicitar em nome do amor" (vs. 8, 9). Um dom para ser tal deve ser outorgado livre e voluntariamente; um dom que se obtém por coerção não é tal.

Então Paulo faz seu pedido no versículo 10, e seu pedido é por Onésimo. Não intercede em favor de si mesmo ou para obter vantagens, mas em favor de outra pessoa que está desprotegida e indefesa. Tampouco pede que o obtenha para si, porém em favor dele, isto é, intervém em prol de Onésimo (v. 12, 17). Note como ele demora em pronunciar o nome do Onésimo, como se duvidasse fazê-lo. O apóstolo já tinha adiado por duas vezes seu pedido. Ele não desculpa a Onésimo; livremente admite que este tinha sido uma pessoa inútil e sem valor; mas declara algo a seu favor: é útil agora (v. 11).

Ignoramos como esse escravo encontrou Paulo e foi capaz de visitá-lo na cadeia. Por intermédio do apóstolo ele se converteu a Jesus, sendo gerado e renascido para uma nova vida por meio do Evangelho.

O verdadeiro Cristianismo é aquele que faz com que os homens maus se transformem em homens bons. É significativo notar que Paulo declara que em Cristo a pessoa inútil se converte em útil. Como escravo era explorado e por isso ele próprio tentava, sempre que conseguisse, explorar também o senhor, esquivando-se o mais possível do trabalho. A nova vida, no entanto, se mostra no fato de que o "escravo inútil" se transforma em ser humano útil no meio da realidade antiga.

O Cristianismo transforma as condições antigas de dentro para fora, por meio de uma nova atitude diante do trabalho e da vida em si. Os servos outrora inúteis não apenas se transformam em "servos comuns", que realizam o que se espera deles, mas eles fazem mais do que sua obrigação, pois agora eles se percebem como "escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus" (Ef. 6:5-8).

O Cristianismo não foi criado para produzir pessoas ociosas, ineficazes, sonhadoras e indefinidas. Pelo contrário! Produz gente útil, que tem um sentido das coisas, que pode fazer uma tarefa melhor que outros. Há pessoas daqueles que se pode dizer que têm "uma mente tão celestial que não é de utilidade alguma na Terra", mas o verdadeiro Cristianismo faz com que possamos ao mesmo tempo ter uma mente celestial e sermos úteis na Terra.

Desse tipo é, pois, a utilidade de Onésimo. Ele se transformou de "inútil" não apenas em servo útil, mas tornou-se mais que útil, da mesma maneira como Filemom também fará mais do que é necessário ou exigido: em amor, receberá o escravo como irmão, concedendo-lhe a liberdade, ao passo que este permanecerá livre e espontaneamente ao lado do patrão ou de Paulo, tentando servir-lhes como pessoa livre. Desde já sua utilidade, que transcende a medida comum, pode ser notada no fato de que se tornou precioso e útil para Paulo e Filemom.

Paulo chama Onésimo de "meu filho, que gerei enquanto estava preso" (v. 10). Existe um dito rabínico que diz: "Se uma pessoa ensinar o filho de seu vizinho a Lei, segundo a Escritura é como se ele o tivesse gerado". Levar um homem a Cristo, guiar um homem a Deus, é tão grandioso como tê-lo trazido ao mundo. Feliz é o pai que traz seu filho à vida e que logo o guia à vida eterna, porque então este filho será tido por seu duplamente.

O direito exige que um escravo fugitivo seja enviado de volta. Paulo cumpre a lei. Enviar de volta o escravo é uma atitude legalmente demandada tanto nos termos da lei romana como da judaica. O versículo 12 tem um duplo significado. "Eu to envio de volta", escreve Paulo. Mas o verbo grego anapempein não só significa enviar de volta; significa também "remeter um caso a". Paulo está como que dizendo a Filemom: "Estou te remetendo o caso de Onésimo, para que dês um veredicto que concorde com o amor que teria que ter".

Onésimo deve ter-se convertido em alguém muito querido a Paulo, durante esses meses da prisão, porque Paulo o elogia muito ao dizer que mandar-lhe Filemom é como enviar-lhe um pouco de seu próprio coração (v. 12). Observe que, simultaneamente, ele combina o direito: envio-o de volta para ti com o amor que supera a lei: ou seja, o meu próprio coração. Aqui o amor se reveste de sua mais terna linguagem: peço-te em favor de meu filho, envio-te de volta meu coração.

Logo vem a apelação. Paulo gostaria de ficar com Onésimo, mas o envia de volta a Filemom, porque não deseja fazer nada sem o seu consentimento (vs. 13,14). Paulo tinha o desejo e a firme intenção de conservar junto de si o irmão ao qual passou a amar e que se tornou útil. Contudo, depois resolveu desistir da idéia. Não pretendia impor seus desejos nem insistir em seu direito (e que Filemom faça como ele!), embora como apóstolo poderia ter conseguido assim um auxiliar que lhe aliviaria um pouco a vida.

Mais uma vez aqui há um fato significativo. O Cristianismo não existe para ajudar os crentes a escaparem do seu pecado; existe para capacitar seus seguidores a enfrentar o passado e a elevar-se acima dele. Onésimo tinha escapado. Não se devia permitir que evitasse as conseqüências de seus equívocos. Devia voltar, e enfrentar as conseqüências do que tinha feito. Logo devia aceitá-las e elevar-se acima delas. Cristianismo não é nunca uma escapatória: é sempre uma conquista.

No verso 15, Paulo especula uma tese surpreendente. Audaciosa e, não obstante, cuidadosamente ("talvez!") ele pergunta, se por trás da fuga do escravo não poderia ser notada outra realidade: "Talvez ele tenha sido separado de você por algum tempo, para que você o tivesse de volta para sempre". Para que se possa obter uma resposta a isso, há necessidade de uma visão diferente da fuga, porque somente a visão diferente poderá conduzir a uma avaliação e decisão diferentes.

As palavras de Paulo indicam um lado divino em todo o acontecido. E não se trata de uma suposição incerta. Porque igualmente é indubitável que para esse escravo a fuga tenha se tornado causa de sua redenção eterna e ao mesmo tempo para Paulo um presente cheio de consolo e utilidade. Filemom não teve nenhuma desvantagem: ele perdeu o escravo por breve tempo, a fim de que ele o recuperasse para sempre como um irmão presenteado com nova vida. Filemom ganhou mais do que havia perdido. O escravo não é simplesmente devolvido (como uma mercadoria furtada), o prejuízo não é apenas reparado (v. 18). Porém, Filemom obtém mais que meramente um escravo, a saber um ser humano pleno e um irmão amado: leva vantagem para o mundo presente e para o futuro.

Entretanto, Onésimo retorna agora com uma diferença. Foi embora como um escravo pagão; volta como um irmão em Cristo (v. 16). Vai ser duro para Filemom considerar como irmão a um escravo fugitivo; mas é exatamente o que Paulo lhe ordena. Paulo diz: "Assim, se você me considera companheiro na fé, receba-o como se estivesse recebendo a mim" (v. 17). Aqui outra vez há algo muito significativo. O cristão deve sempre dar as boas-vindas à pessoa que se equivocou. Muitas vezes consideramos com suspeita a pessoa que se equivocou e que tomou o mau caminho; muitas vezes demonstramos que nunca estaremos preparados a confiar nele outra vez. Podemos crer que Deus o perdoará; mas para nós será difícil fazê-lo.

Tem-se dito que o mais reconfortante a respeito de Jesus Cristo é que Ele confia em nós exatamente nas mesmas circunstâncias de nossas derrotas. Quando alguém se equivoca, o caminho de volta pode ser muito duro, e Deus não perdoará imediatamente à pessoa que, em seu farisaísmo ou em seu falta de simpatia, faz mais difícil que o pecador se recupere.

Do ponto de vista do direito, um escravo capturado é enviado de volta ao proprietário com a sugestão de tolerância e com o pedido por tratamento transigente. Entretanto, a realidade era bem outra. Escravos fugitivos eram castigados duramente e muitas vezes com crueldade. Em Roma eles eram estigmatizados com um sinal na testa feito por um ferro em brasa. Conseqüentemente, um escravo assim estava marcado para sempre: esse foi um fugitivo! Para servir de exemplo preventivo, muitos escravos capturados também recebiam anéis de ferro soldados, e eram lançados às feras na arena ou crucificados.

Visto, porém, pela perspectiva do amor, acontece aqui o milagre da verdadeira humanização, que interliga de maneira nova todos os envolvidos, levando muito além das exigências legais. Onésimo, antes inútil, não retorna agora simplesmente como obediente escravo bom e trabalhador, mas como alguém que é mais que escravo, a saber, é presenteado a Filemom como irmão amado. O presente do amor supera toda exigência da lei, porque vem da liberdade, conduz à liberdade e mantém na liberdade.

Por fim, Paulo diz: "Se ele o prejudicou em algo ou lhe deve alguma coisa, ponha na minha conta" (v. 18). Novamente Paulo transita do nível da comunhão de fé, na qual o amor sempre dá o primeiro passo, para o nível do direito. O apóstolo declara que está disposto a pagar a indenização pelos prejuízos de Onésimo, que pode ser reclamada legalmente. Paulo deixa em aberto de que maneira o proprietário poderia ter sido prejudicado, o que significa uma deferência em relação a ambos. Somente é capaz de estabelecer a paz quem se posiciona entre as partes e se torna solidário com ambos os lados, correndo o risco de ser rejeitado e alvo de suspeita. Muito mais difícil é unir como irmãos amados dois parceiros tão desiguais como um patrão e seu escravo!

Ora, uma das leis da vida cristã é que o transgressor terá que pagar o preço de ter cometido o pecado. Deus pode perdoar e o faz, mas nem mesmo Deus pode libertar o homem das conseqüências do que tem feito. Mas a glória da fé cristã é que, assim como Jesus Cristo carregou com o pecado de todos os homens, há aqueles que em seu amor estão preparados para pagar o preço dos pecados e erros dos que amam.

O Cristianismo nunca autorizou ninguém a não pagar suas dívidas. Onésimo certamente tinha roubado a Filemom, além de fugir. Se não se tivesse apropriado do dinheiro de Filemom, é difícil que teria podido fazer o longo caminho a Roma. Mas Paulo escreve com sua própria mão que ele se fará responsável e pagará tudo: "Eu, Paulo, escrevo de próprio punho: Eu pagarei" (v. 19). De próprio punho, Paulo assina uma confissão de dívida, como era comum entre sócios comerciais.

A palavra grega composta traduzida "escrevo de próprio punho" é queirografon. É interessante notar que este é um tipo de reconhecimento ou confissão de dívida no Direito Romano. Trata-se de uma obrigação voluntariamente aceita e assinada. Literalmente trata-se de um autógrafo cujo significado técnico - que cada um pode entender - era de uma nota assinada a mão por um devedor que reconhece a dívida. Era quase exatamente o que nós chamamos uma nota promissória. Tratava-se de uma admissão assinada de dívida ou de descumprimento.[1]

Filemom também está em dívida com o apóstolo. Deve-lhe não apenas algo, mas a si mesmo, se bem que não em sentido legal (da forma como Onésimo deve a si mesmo, como mercadoria, ao seu proprietário), mas no amor, diante do qual ambos são devedores. Exatamente como Onésimo, também Filemom veio a conhecer o amor de Deus em Jesus por meio do apóstolo. Por isso também está pessoalmente em dívida, humanamente falando, para com o apóstolo.

Os que abraçaram a fé assumem a dívida de sustentar com suas posses aqueles que lhes anunciaram a palavra. Além disso, estão, como irmãos, em uma relação de dívida recíproca: sua dívida é "amar um ao outro". Como bem disse o apóstolo Paulo: "A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei" (Rm. 13:8).

Notas:

Credor Quirografário: É o credor que não possui direito real de garantia, seus créditos estão representados por títulos advindos das relações obrigacionais. Ex: cheques, duplicatas, promissórias etc.